Ah, que saudade das
verdinhas!
* Por Daniel Santos
Nem
lembro de quem ganhei, faz muito tempo já. Ou ninguém me presenteou e comprei
eu mesmo para usar em casa, ir à praia, coisas assim. O fato é que me apeguei a
ela – ou melhor, ao par – como uma natural extensão do meu próprio corpo.
Eram
verdinhas. “Verde-nojo”, implicava minha esposa que, invasiva, autoritária, sem
pedir autorização, costumava lavar as sandálias de borracha com desinfetante e
deixá-las na área de serviço para secar.
Cansei
de lhe pedir para usar apenas sabão, por desconfiar que outras substâncias
poderiam acelerar sua deterioração, mas ela fazia ouvidos de mercador. Segundo
dizia, a borracha das sandálias soltava um cheiro insuportável que só saía com
desinfetante.
Ao
final do segundo ano de uso, senti que a espessura da sola diminuía, porque o
calcanhar quase tocava o chão, o que, afinal, aconteceu para meu absoluto
abatimento moral: as verdinhas desmanchavam-se!
Desmanchavam-se,
mas continuei gostando delas, ou melhor, passei a gostar mais ainda. Por isso,
não as atirei no lixo meses depois, quando desgastaram-se na parte da frente e,
assim, além do calcanhar, também o dedão pisava diretamente no chão!
Foi
a época em que minha mulher mais implicou com as verdinhas e, no auge da crueldade,
tentou impedir que “os chinelos da decadência”, como dizia com desprezo para
mim incompreensível, ficassem lado a lado da cama de casal, enquanto eu dormia.
Ignorei
seu veto, que, claro, ela abusava das prerrogativas de esposa. No mais,
continuamos como sempre, se bem algumas vezes percebesse no rosto dela um ricto
de asco e de amargura; em virtude, na certa, dessa tendência feminina para
dramatizar tudo.
Mas
parou por aí. Ou assim ela me convenceu, ao manter-se calada, quando as tiras
das sandálias soltaram-se e remendei-as com barbante, depois com grampos de
alumínio. Claro, por essa época, calçava-as de raro em raro para preservá-las,
se possível, até a eternidade. Tal, no entanto, revelou-se uma quimera que
minha esposa desfez na minha ausência, num momento de descontrole emocional:
atirou-as à lixeira!
Esse
gesto, compreendi-o como de alta traição. Para me compensar a perda que quase
me tornou depressivo, ela me presenteou com um novo par de sandálias que a
custo calcei.
Mas
isso foi há alguns anos. Agora, já me acostumei, ainda mais que estão
envelhecendo como as verdinhas e, admito, começo a gostar delas também.
* Jornalista carioca. Trabalhou como repórter e
redator nas sucursais de "O Estado de São Paulo" e da "Folha de
São Paulo", no Rio de Janeiro, além de "O Globo". Publicou
"A filha imperfeita" (poesia, 1995, Editora Arte de Ler) e
"Pássaros da mesma gaiola" (contos, 2002, Editora Bruxedo). Com o
romance "Ma negresse", ganhou da Biblioteca Nacional uma bolsa para
obras em fase de conclusão, em 2001.
No uso esse seu amor pode até ter se deteriorado rápido demais, porém, na natureza, quantas décadas precisarão passar para ela se decompor de vez?
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