Transitar: um verbo difícil de conjugar
* Por Mara Narciso
Transitar, verbo intransitivo: bom jogo
de palavras, mas já há um excelente texto com esse nome. Então, foi preciso
mudar. Passar em trânsito, fazer caminho, eis o significado de transitar. O
substantivo é trânsito, que nas cidades de médio e grande porte é seguido pelo
adjetivo “caótico”. Sendo o mesmo que tráfego (não confundir com tráfico), onde
os veículos estão ficando mais parados do que andando. Como passar?
Quando a carne ficou barata no plano
Cruzado, e os brasileiros poderiam comprá-la, não teve produto suficiente.
Agora, em tese, todos podem ter um carro, mas não há espaço. Entupiu, travou.
Não se pode andar e nem estacionar. As cidades não se prepararam para este
acontecimento. O aporte de carros e motos foi muito maior do que a capacidade
das vias públicas em recebê-los.
Montes Claros tem cerca de 400 mil
habitantes, e 120 mil veículos, sem contar as carroças e bicicletas. Assim, em
cada canto um absurdo, visto a pé ou de carro, de noite ou de dia. Em cada
sinal, é preciso andar e parar muitas vezes nos horários de pico, e pela janela
desfilam barbaridades de vários matizes. Quem está num carro bonito se acha
mais dono da via pública do que quem está num carro feio (leia-se velho). Quem
tem num veículo mais possante acredita poder abrir caminho com a força do
motor. Ou do pensamento.
Na avenida, um homem pedala uma
bicicleta cargueira no canto destinado a quem vai devagar. Uma mulher passa no
seu veículo importado, e acha um abuso um ciclista ir para o seu trabalho justo
na hora da sua passagem. Torce o nariz com desdém, aperta o espaço do moço, e
acelera perigosamente. As castas não são oficializadas, mas estão na cabeça de
várias pessoas.
Muita gente vai seguindo as leis de
trânsito para favorecer o fluxo de veículos, senão ninguém anda, já que as ruas
estão abarrotadas. Um caminhão baú vai sair para outro estacionar. Quem vem
chegando precisa entender logo a operação carga/descarga, para que a
interrupção seja mais curta. As buzinas já se fazem ouvir. É normal ter pressa.
Se não existe precisa ser inventada, pois agenda cheia dá status. Na saída da
garagem de um supermercado, uma mulher deixa a área no seu carro. O porteiro
diz alto, mas educadamente: a senhora precisava ter comprado alguma coisa para
usar a nossa garagem!
Uma mulher bonita, de presumíveis 30
anos, um pouco acima do peso, varre a rua, próxima ao meio-fio. Pratica a
varrição com um uniforme alaranjado descorado, mangas compridas, luvas, chapéu
sob um imenso sol. Aquele tão quente quanto impossível. O inesperado é o seu
rosto discretamente maquiado e a boa cara que ostenta.
O sinal foi aberto para carros e duas
pessoas estão terminando de passar sobre a faixa de pedestres. Têm a
preferência, mas há quem jogue o carro em cima delas, pois afinal, tem o poder,
está motorizado, e vale mais do que quem vai a pé.
Um cego passa com seu bastão
brandindo-o adiante do seu corpo, varrendo o espaço, e simultaneamente batendo
no chão para favorecer sua caminhada. O inusitado é a pressa e destreza com as
quais atravessa a rua. Isso se chama coragem aliada à necessidade.
Adiante uma mulher corre pela rua, ao
lado da pracinha, com tal velocidade, que poderia ser uma atleta em
treinamento. Na calçada oposta pega um brinquedo de pelúcia e volta com a mesma
agilidade. Acompanhando sua trajetória, pode-se ver o motivo de sua pressa: um
carrinho com duas crianças, uma menina de pé, equilibrando-se, e outra de
poucos meses, deitada. A mulher largou os filhos, apenas por segundos, de olho
na violência.
Às 21 h começa a blitz Lei Seca. Cones
são colocados no centro da Avenida, vários policiais entram em cena, todos
vestidos para a guerra. Um deles carrega uma metralhadora. Na esquina estão
três motos grandes com seus condutores prontos para caçar os fujões. A ordem de
parar é dada para todas as motos e vários carros. É preciso soprar o bafômetro.
A multa chega a quase 2 mil reais para quem tiver ingerido álcool. Acima de
certo limite o carro é retido e a habilitação caçada.
Largando a rua e entrando nalgum
prédio, pensa-se que é dentro deles que o mais importante acontece. Sim, mas é
lá fora que precisamos revigorar e praticar a civilidade.
*Médica endocrinologista, jornalista
profissional, membro da Academia Feminina de Letras de Montes Claros e autora
do livro “Segurando a Hiperatividade” – blog http://www.teclai.com.br/
A solução é transporte público moderno, pontual e de qualidade. Em Londres, até a classe média alta anda de metrô, e estacionar no setor financeiro da cidade custa uma exorbitância - o que força o indivíduo a usar os coletivos. Muito bom texto, Mara. Abraços.
ResponderExcluirDifícil andar e mais difícil ainda é parar. Já tem um tempo que sabemos que chique é poder ir à pé. O metrô é luxo inalcançável para a nossa cidade pobre. As autoridades estão tão encurraladas quanto os felizes proprietários de veículos. Tenho mais pena do que estão chegando agora. Obrigada pelo comentário.
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