quarta-feira, 6 de março de 2013


Transitar: um verbo difícil de conjugar

* Por Mara Narciso

Transitar, verbo intransitivo: bom jogo de palavras, mas já há um excelente texto com esse nome. Então, foi preciso mudar. Passar em trânsito, fazer caminho, eis o significado de transitar. O substantivo é trânsito, que nas cidades de médio e grande porte é seguido pelo adjetivo “caótico”. Sendo o mesmo que tráfego (não confundir com tráfico), onde os veículos estão ficando mais parados do que andando. Como passar?

Quando a carne ficou barata no plano Cruzado, e os brasileiros poderiam comprá-la, não teve produto suficiente. Agora, em tese, todos podem ter um carro, mas não há espaço. Entupiu, travou. Não se pode andar e nem estacionar. As cidades não se prepararam para este acontecimento. O aporte de carros e motos foi muito maior do que a capacidade das vias públicas em recebê-los.

Montes Claros tem cerca de 400 mil habitantes, e 120 mil veículos, sem contar as carroças e bicicletas. Assim, em cada canto um absurdo, visto a pé ou de carro, de noite ou de dia. Em cada sinal, é preciso andar e parar muitas vezes nos horários de pico, e pela janela desfilam barbaridades de vários matizes. Quem está num carro bonito se acha mais dono da via pública do que quem está num carro feio (leia-se velho). Quem tem num veículo mais possante acredita poder abrir caminho com a força do motor. Ou do pensamento.

Na avenida, um homem pedala uma bicicleta cargueira no canto destinado a quem vai devagar. Uma mulher passa no seu veículo importado, e acha um abuso um ciclista ir para o seu trabalho justo na hora da sua passagem. Torce o nariz com desdém, aperta o espaço do moço, e acelera perigosamente. As castas não são oficializadas, mas estão na cabeça de várias pessoas.

Muita gente vai seguindo as leis de trânsito para favorecer o fluxo de veículos, senão ninguém anda, já que as ruas estão abarrotadas. Um caminhão baú vai sair para outro estacionar. Quem vem chegando precisa entender logo a operação carga/descarga, para que a interrupção seja mais curta. As buzinas já se fazem ouvir. É normal ter pressa. Se não existe precisa ser inventada, pois agenda cheia dá status. Na saída da garagem de um supermercado, uma mulher deixa a área no seu carro. O porteiro diz alto, mas educadamente: a senhora precisava ter comprado alguma coisa para usar a nossa garagem!

Uma mulher bonita, de presumíveis 30 anos, um pouco acima do peso, varre a rua, próxima ao meio-fio. Pratica a varrição com um uniforme alaranjado descorado, mangas compridas, luvas, chapéu sob um imenso sol. Aquele tão quente quanto impossível. O inesperado é o seu rosto discretamente maquiado e a boa cara que ostenta.

O sinal foi aberto para carros e duas pessoas estão terminando de passar sobre a faixa de pedestres. Têm a preferência, mas há quem jogue o carro em cima delas, pois afinal, tem o poder, está motorizado, e vale mais do que quem vai a pé.

Um cego passa com seu bastão brandindo-o adiante do seu corpo, varrendo o espaço, e simultaneamente batendo no chão para favorecer sua caminhada. O inusitado é a pressa e destreza com as quais atravessa a rua. Isso se chama coragem aliada à necessidade.

Adiante uma mulher corre pela rua, ao lado da pracinha, com tal velocidade, que poderia ser uma atleta em treinamento. Na calçada oposta pega um brinquedo de pelúcia e volta com a mesma agilidade. Acompanhando sua trajetória, pode-se ver o motivo de sua pressa: um carrinho com duas crianças, uma menina de pé, equilibrando-se, e outra de poucos meses, deitada. A mulher largou os filhos, apenas por segundos, de olho na violência.

Às 21 h começa a blitz Lei Seca. Cones são colocados no centro da Avenida, vários policiais entram em cena, todos vestidos para a guerra. Um deles carrega uma metralhadora. Na esquina estão três motos grandes com seus condutores prontos para caçar os fujões. A ordem de parar é dada para todas as motos e vários carros. É preciso soprar o bafômetro. A multa chega a quase 2 mil reais para quem tiver ingerido álcool. Acima de certo limite o carro é retido e a habilitação caçada.

Largando a rua e entrando nalgum prédio, pensa-se que é dentro deles que o mais importante acontece. Sim, mas é lá fora que precisamos revigorar e praticar a civilidade.

*Médica endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia Feminina de Letras de Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade” – blog http://www.teclai.com.br/    

2 comentários:

  1. A solução é transporte público moderno, pontual e de qualidade. Em Londres, até a classe média alta anda de metrô, e estacionar no setor financeiro da cidade custa uma exorbitância - o que força o indivíduo a usar os coletivos. Muito bom texto, Mara. Abraços.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Difícil andar e mais difícil ainda é parar. Já tem um tempo que sabemos que chique é poder ir à pé. O metrô é luxo inalcançável para a nossa cidade pobre. As autoridades estão tão encurraladas quanto os felizes proprietários de veículos. Tenho mais pena do que estão chegando agora. Obrigada pelo comentário.

      Excluir