Pianolatria
* Por
Mário de Andrade
É costume dizer-se que
São Paulo está musicalmente mais adiantado do que o Rio. E logo a prova:
“Tivemos Carlos Gomes. Temos Guiomar Novaes”.
Não há dúvida. O Brasil
ainda não produziu músico mais inspirado nem mais importante que o campineiro.
Mas a época de Carlos Gomes passou. Hoje sua música pouco interessa e não
corresponde às exigências musicais do dia, nem à sensibilidade moderna. Representá-lo
ainda seria proclamar o bocejo uma sensação estética. Carlos Gomes é
inegavelmente o mais inspirado de todos os nossos músicos. Seu valor histórico,
para o Brasil, é será sempre imenso. Mas ninguém negará que Rameau é uma das
mais geniais personalidades da música universal... Sua obra-prima, porém,
representada há pouco em Paris, só trouxe desapontamento. Caiu. É que o
francês, embora “chauvin”, ainda não proclamou o bocejo sensação estética.
A senhorinha Novaes é
uma grandíssima intérprete . Sinto prazer em afirmar essa verdade e prometo,
para logo, um estudo carinhoso de sua personalidade. Porém a senhorinha Guiomar
Novaes e Carlos Gomes provam quando muito que temos a fortuna de produzir 2
talentos musicais extraordinários.
- E a nossa escola de
piano? retrucarão... Não há dúvida. Possuímos nossa escola de piano como,
certo, a América do Sul não apresenta outra. Mas não é o progresso implacável
do piano, aqui uma das causas do nosso atraso musical? É. Dizer música, em São
Paulo, quase significa dizer piano. Qualquer audição de alunos de piano enche
salões... Qualquer pianista estrangeiro tem aqui acolhida incondicional...
Mas é quase só. Certo:
há na cidade virtuoses e professores de canto, violino, harpa etc. de seguro
valor. Mas não há o que se poderia chamar a tradição do instrumento. Não há uma
continuidade de orientação firme e sadia. E, principalmente, não há alunos. O
violinista com estudo de seis anos é raríssimo. O flautista ainda o é mais. No
entanto, um Figueras, um Mignone que dignos, cuidadosos mestres! ...
Mas qual! Há uma fada
perniciosa na cidade que a cada infante dá como primeiro presente um piano e
como único destino yocar valsas de Chopin!...
“Sou alfa e ômega,
primeiro e último, princípio e fim” como no Apocalipse.
E as manifestações mais
elevadas da música? E o quarteto e a sinfonia?
São Paulo não conseguiu
ainda sustentar uma sociedade de música de câmara. E só agora a sinfonia parece
atrair um pouco os pianólatras paulistanos.
Bem haja pois a
Sociedade de Concertos Sinfônicos!
No Rio há tudo isso.
Há tradição de violino, de violoncelo, de canto... Com que inveja verificamos
há pouco o admirável conjunto de Paulina D’Ambrósio! No Rio ouve-se a sinfonia
periodicamente. No Rio há uma educação musical.
São Paulo tem apenas
uma educação pianística, uma tradição pianística. Necessitamos dum quarteto
verdadeiramente ativo. Precisamos proteger a Sociedade de Concertos Sinfônicos,
em tão boa hora inaugurada.
Só então, livre do
preconceito pianístico, São Paulo será musical.
(Crônica publicada na
revista “Klaxon” n° 1 de 15 de maio de 1922)
*
Poeta, romancista, musicólogo, historiador e crítico de arte, um dos fundadores
do Modernismo no Brasil.
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