Um
romance como só um cego saberia contar
* Por Fernando Yanmar Narciso
Muitas vezes, um filme é apedrejado tanto por
críticos como pela audiência. Até você acha o tal filme uma porcaria à primeira
vista, mas por algum motivo, toda vez que ele é reprisado na TV, lá está você,
lutando contra o sono para chegar ao final dele mais uma vez. A TV por
assinatura facilitou muito a catequização desses filmes-fetiche, tendo canais
que repetem um mesmo filme por uma semana inteira. Há pelo menos três filmes
que, mesmo sendo ruins com louvor e que quase ninguém goste, não consigo parar de
ver até o final sempre que são reprisados: Constantine, com Keanu
Reeves, Alexandre o Grande, com Colin Farrell- Podem rir à vontade!- e,
o que interessa hoje para nós, Tróia, um relato quase ateu da guerra
mais famosa do mundo.
Homero, um bardo cego que supostamente viveu no
século VIII a.C, tornou-se também o autor mais imitado da história, devido às
suas obras- primas Ilíada, nosso assunto de hoje, e a Odisséia,
que relata a viagem de volta do herói Ulisses da Guerra de Tróia. Claro que,
pelo bem da bilheteria, toda a obra original foi extremamente simplificada por
Hollywood, para que os americanos tapados pudessem entender o filme. Da maioria
dos personagens, só restaram os nomes. O diretor Wolfgang Peterson, nas
primeiras reuniões para discutir Tróia, decidiu não usar Zeus nem seus
comparsas do Monte Olimpo como personagens fixos no filme, por considerar os
deuses gregos muito ingênuos. Assim, eles seriam apenas citados pelos
personagens, e a produção focou-se apenas no fator humano da história.
Quase todo mundo já deve ser familiarizado com o
enredo da guerra de Tróia: Há muito tempo, Páris (Orlando Bloom), um dos
príncipes troianos, se apaixona perdidamente e sequestra a rainha Helena de
Esparta (Diane Kruger), a perfeição feminina em pessoa, das mãos do rei Menelau
(Brendan Gleeson, o próprio Brutus). Sedento de vingança, ele pede ajuda ao
irmão, rei Agamemnom de Micenas (Brian Cox) para resgatá-la e puni-la pela
traição. Agamemnom, que há muito planejava conquistar Tróia, utiliza a mágoa do
irmão como pretexto para declarar guerra ao rei Príamo de Tróia(o Lawrence da
Arábia em pessoa, Peter O´Toole).
Mas a narração de Homero não se trata exatamente do
conflito entre reis, e sim do conflito entre os dois melhores soldados de cada
lado: o semideus Aquiles (Brad Pitt, em atuação vergonhosa), herói da Grécia e
grande desafeto de Agamemnom, que é convencido por sua mãe, a ninfa Tétis- por
sinal, a única divindade a aparecer no filme todo- a liderar o exército grego
na guerra e ser lembrado como o maior soldado que já existiu, mesmo que ela
saiba que o destino de seu filho é morrer em combate. Ainda com má vontade, ele
se lança nessa aventura, que traz dez anos de carnificina diária, apesar de o
filme fazer parecer que a guerra não durou nem um mês.
E do lado troiano, há o príncipe Heitor (o subestimado e excelente Eric Bana),
filho mais velho de Príamo e melhor soldado de seu povo, que tenta evitar o
conflito de nações até o último minuto. A coisa que ele mais temia era um
confronto corpo a corpo com Aquiles, mas é claro que ele acaba ocorrendo, caso
contrário não haveria enredo. O semideus tinha um muito estimado
“donzelo”chamado Pátroclo- que o filme covardemente transformou em primo do
guerreiro, pois para os americanos, grandes heróis não podem ser pederastas-
que quer a todo custo lutar na guerra, mas ele nunca o deixa ir junto. Num dia
em que Aquiles não estava com muito saco para dilacerar gargantas, Pátroclo
pega a armadura dele sem avisar e vai liderar o exército grego fingindo ser o
amante. No calor da batalha, ele acaba esbarrando com Heitor, que o mata.
Ao saber que a menina dos seus olhos foi
assassinada, Aquiles é tomado por uma ira sobre-humana, que faria até Chuck
Norris se borrar de medo, e sai matando milhares de troianos por dia para
tentar espiar seu ódio- tal eugenia também foi omitida do filme, para poupar o
“heróico” Brad Pitt- até ficar frente a frente com Heitor e o desafiar para um
duelo diante dos muros troianos. Para saber como termina esta saga, não deixem-
ou deixem, sei lá- de ver o filme ou, de preferência, procurar pelo livro Tróia:
O romance de uma guerra, de Cláudio Moreno, que pega os mais de 15.000
versos da Ilíada e transforma numa deliciosa novela das 6, por assim dizer.
E pensar que a maior guerra da história pode ter
sido provocada por uma mulher... Ou, mais “provável”, por Zeus e seus colegas.
Segundo Homero, todas as intrigas que acarretaram na guerra foram provocadas
pelos caprichos do panteão de divindades mais promíscuas e anarquistas de todas
as mitologias, que vêem os seres humanos como peças num enorme tabuleiro de
Banco Imobiliário. Se bem que, se ignorarmos o aspecto místico da narrativa,
ainda temos uma guerra que durou dez anos. Tempo mais que suficiente para o
príncipe Páris engravidar Helena umas três vezes, e da mulher mais bela do
mundo sofrer os inevitáveis efeitos da gravidade. Será que tanto sangue
derramado, se é que foi mesmo derramado, valeu a pena no final? Só um cego
poderia nos dizer...
*Designer e escritor. Site: HTTP://terradeexcluidos.blogspot.com.br
Excelente e engraçada resenha. Até me fez sorrir, eu que sou dura na risada.
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