Tempos conturbados 5 – Afinal
Por Urda
Alice Klueger
(Parte do livro "Meu cachorro Atahualpa,
publicado em 2010)
Era 30 de maio quando minha mãe
faleceu, e eu me sentia tão cansada, tão estressada, que não sabia como é que a
vida iria continuar. Havia muitos amigos e muitos primos me dando arrimo, mas
não sei como teria sido sem o meu cachorrinho. Lembro-me como, no dia da missa
de sétimo dia da minha mãe, minha querida Neide apareceu e ficou decididamente
ao meu lado, me apoiando, e depois foi me fazer uma visita – meu apartamento
estava bastante desarrumado, eu diria que quase caótico, mas aquilo já não me
importava muito – eu estava em estado de despedida dele.
Junho passou-se inteiro sem que
os negócios se decidissem. Andava muito ocupada resolvendo os problemas de
papéis, contas, etc., que acontecem depois do falecimento de uma pessoa, mas o
tempo todo muito ansiosa pela minha casinha que ainda não tinha sido vendida,
torcendo para que ninguém a comprasse antes de mim, e tendo longas conversas
com Atahualpa de como seria nossa vida nela, continuando a prometer-lhe uma
casinha com seu próprio jardim e, solidário, meu cachorrinho parecia entender
tudo, e me acarinhava e me lambia quando eu chorava de exaustão, e depois
brincava comigo pela casa toda, correndo atrás de uma bola ou do pano velho que
eu arrastava, e eu sempre tirava tempo para que fizéssemos longas caminhadas
pelas ruas que imaginava livres de cobras venenosas, e dormíamos e acordávamos
juntos, e o mês era frio, chuvoso e triste, e teria sido muito mais difícil sem
Atahualpa.
Em julho, Atahualpa e eu tiramos
uma semana de férias e fomos passá-la no Pouso e Poesia (WWW.sambaqui.com.br/pousodapoesia), pousada do meu amigo Raul
Longo e da Ida, lá na praia do Sambaqui, em Florianópolis. Era a terceira vez
que Atahualpa via o mar (já o vira na Praia de Estaleiro e em Porto Belo), só
que dessa vez ele tinha uma companhia canina: a Canela, cachorrona extremamente
livre do meu amigo Raul.
Até chegar lá, eu não sabia que
estava tão cansada – desmoronei ao pisar no Pouso e Poesia. Acabou sendo uma semana
idílica, onde Atahualpa, Canela e eu fazíamos longos passeios à beira mar pelas
manhãs, dormíamos nas tardes e eu fiz todas as refeições no bar do seu Antônio,
comendo sempre tainha frita com pirão branco ou dúzias de ostras que viviam num
engradado dentro do mar, sob o restaurante, e que o seu Antônio recolhia com a
ajuda de uma corda, a cada vez em que alguém pedia ostras frescas.
Fazia tanto tempo que não
escrevia algo que não fosse triste e angustiante que havia perdido o jeito, mas
conforme os dias iam passando, criei umas poucas crônicas que o Raul achou
ótimas, mas que eu sabia que não estavam nada boas. Como sempre, Atahualpa e eu
dormíamos um perto do outro, no mesmo apartamento, e depois do sono das tardes,
íamos de novo passear na praia. Há muitas coisas para contar daqueles dias e
daqueles passeios com Canela – renderão, com certeza, muitas crônicas futuras.
O que não saía da minha cabeça, no entanto, era a promessa que continuava
fazendo ao meu cachorro, de que iríamos ter uma casinha com jardinzinho para
ele, e torcia com todas as forças para que os negócios imobiliários, em
Blumenau, se concretizassem enquanto estávamos fora.
Mais rápido do que parecia, a
semana se passou e voltamos – para descobrir que continuávamos na mesma
situação. Dias depois, no entanto, os negócios aconteceram, e houve um domingo
à tarde em que juntei todos os grandes lençóis e colchas que tinha, e tirei
todas as roupas dos armários fazendo com elas grandes trouxas, pois íamos nos
mudar. Para um cachorrinho que vivera naquele apartamento desde que se
lembrava, e o sabia de certa forma, aquelas alterações deveriam estar parecendo
o caos, e Atahualpa farejava as grandes trouxas angustiadamente, me olhando de
esguelha como quem pergunta:
- Nossa vida virou de cabeça para
baixo de novo? O que está acontecendo?
O que estava acontecendo ele não
entendera bem quando eu explicara: na noite do dia em que eu assinara a
documentação da venda do apartamento e da compra da casa, enquanto voltávamos
para casa na escuridão fria e chuvosa de julho, eu contara tudo direitinho a
ele:
- Atahualpa, nunca mais, nunca
mais vamos ter que viver naquele lugar horrendo! Nunca mais vamos ver aquelas
casas que ainda não despencaram do morro, nem ter medo de passar na rua em dia
de chuva, temendo que elas venham a cair sobre a gente! Nunca mais vamos ter
medo de que o nosso prédio venha a ser abalado por aquela casa que pode vir a
cair a qualquer momento! Vamos para o paraíso, e vais ter teu jardinzinho e a
tua varanda, e vamos ser felizes – e eu chorava muito e muito de tanta dor
incontida, enquanto lhe explicava tais coisas, pois mesmo para mim parecia
estar vivendo uma irrealidade, que coisas tão boas não poderiam estar
acontecendo realmente, de tão boas que eram. Era um choro de grande alívio, de mágoas
acumuladas, de angústias somadas e de felicidade ao mesmo tempo. Atahualpa se
aconchegou a mim e apertou minha perna com o seu queixo, tentando me consolar,
mas não deve ter entendido tudo, pois estava bastante inseguro e surpreso com
aquelas grandes trouxas amontoadas na sala daquele apartamento que, de repente,
ficava de cabeça para baixo.
Na manhã seguinte, tão logo os
homens da mudança chegaram, levando poucas coisas numa mala e numa sacola, eu e
ele nos mudamos, de novo, para aquele depósito de livros onde passáramos o
verão, esperando uns poucos dias até que nossa mudança fosse ajeitada.
E a 31 de julho de 2009, enfim,
pegamos nossas poucas bagagens e nos mudamos definitivamente para nossa casinha
nova. Era tempo de sermos felizes!
"Eu me dei conta de que cada
vez que um dos meus cachorros parte, ele leva um pedaço do meu coração com ele.
Cada vez que um cachorro novo entra na minha vida, ele me abençoa com um pedaço
de seu coração. Se eu viver uma vida bem longa, com sorte, todas as partes do meu
coração serão de cachorro, então eu me tornarei tão generoso e cheio de amor
como eles." (Autor desconhecido)
*
Escritora de Blumenau/SC, historiadora e doutoranda em Geografia pela UFPR
Agora a felicidade por estar livre do medo de catástrofes.
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