Alfredo
Bosi e o vazio da cultura
Por
Urariano Mota
De
modo geral, e particular também, nos textos de cultura na imprensa
há um grande logro. Eles não cumprem o que anunciam no título, nem cumprem,
quando realizam algum nexo, algo que nos informe, que nos pague o tempo perdido
em percorrer suas páginas. Sim, claro, isto é uma característica geral de todas
as seções da imprensa, das capas que nos enganam aos programas de televisão.
Mas o logro e o malogro das notícias culturais têm um quê de específico, uma
especialização nesse logro geral.
Em seus melhores momentos, os textos de cultura
conseguem um voyeurismo, uma indiscrição da vida privada dos famosos. "Isso
também é cultura", dizem os editores, sem atentar para o significado
particular dado à palavra, confundida com os exames nos laboratórios de
análises clínicas. Em seus piores momentos, nem entre os resultados da matéria
dos laboratórios tal cultura é digna de aparecer. Falta-lhe um quê de justeza,
de adequação, de confiança e crédito no papel que estampam.
Desse pecado não padece
o último número da revista Carta Capital, cuja capa é “O vazio da cultura”.
Aberta por um texto de Mino Carta, que correu mundo na web, dela destaco a
entrevista de Alfredo Bosi a Rosane Pavam. Copio do grande crítico e homem público
algumas linhas para os comentários livres a seguir.
“Ao lado de uma entrega
às pressões da indústria cultural há nas
artes plásticas, na arquitetura e, sobretudo, na música um número considerável
de artistas que fazem pesquisa séria e criam obras de valor”.
Sem dúvida. Cabe observar
que artistas geniais, de valor fecundo e
fecundante, estão fora da indústria cultural, ou por voluntário exílio,
se assim podemos chamar de voluntários os artistas que por natureza são
anti-indústria, portadores de um combate feroz contra a ideologia do capital,
ou estão fora das telinhas e páginas nacionais em razão de se encontrarem à
margem do centro, e o centro no Brasil cultural significa Rio-São Paulo. Para
dar nomes aos que conheço, lembro rápido: Abelardo da Hora, maior escultor
brasileiro, mas os brasileiros não sabem; Rodolfo Mesquita, um desenhista de
traços que ferem, dono de uma rebeldia indigerível no circuito; Ismael Caldas,
pintor dos pintores, cujas pinturas são quadros de reflexões, que não se esgotam
nunca; Guita Charifker, aquarelista madura, imensa, cujas composições fazem a
gente sonhar em paz.... Isso para ficar nas artes plásticas, na imediata
lembrança. Mais: bem que mereceria uma análise do quanto a expulsão do olimpo
do Brasil se dá por região geográfica, profunda ignorância estética e ideologia
política. Mas vamos a outro ponto da entrevista:
“... É claro que a
poesia de protesto ou de sátira política é a mais ostensiva, mas há outras
modalidades menos enfáticas e igualmente resistentes. Hoje, o poeta crescido na
pós-modernidade vive uma condição peculiar, sem horizonte existencial ou
político que lhe dê estímulos para lutar. Em lugar da forte e densa
negatividade dialética de um Brecht ou de um Drummond, de um João Cabral e de
um Ferreira Gullar, o poeta tende a cair em um niilismo cinzento, sinal da sua
paralisia como homem público. Predominam as expressões de humor e melancolia”.
Na verdade, a ideologia
– no sentido que lhe dá Alfredo Bosi - sofreu ou ganhou um deslocamento, das
rodas de intelectuais para os encontros de brasileiros postos à margem de
políticas públicas. Isso me vem à lembrança por saber da poesia marginal do
Recife, de uma criação e contundência que o Brasil nem imagina existir, assim
como a poesia dos saraus na periferia daí mesmo de São Paulo. O que dizer desses
novos criadores, eles perderam a razão de luta? Mas no passo acima creio que um
dos nossos maiores críticos se refere à poesia maior, dita de extração culta,
como em Drummond, principalmente em A Rosa do Povo, como em João Cabral, que
não encontra seguidores que os negue pela superação. Se assim é, ainda assim.
Há criadores cultos, de grande poesia, que o Brasil não conhece e por isso
imagina viver em um vazio cultural. Para falar do que sei (perdoem o ato falho,
pois deveria falar somente do que sei), lembro Alberto da Cunha Melo, que
Alfredo Bosi cultiva e consagrou em avaliação crítica. Lembro Nei Duclós, lá
mesmo no Sul (lá, porque escrevo a partir da periferia), que faz grande poesia
em prosa e verso. Mas continuemos até outro ponto. Diante da pergunta, boa
pergunta de Rosane Pavam:
“É injusto ou incorreto
esperar da literatura brasileira um nível de excelência obtido no passado por
meio de seus grandes escritores, como Graciliano Ramos, ou, antes dele, Machado
de Assis?”.
Assim responde Alfredo
Bosi:
“Se é verdadeira a
afirmação de Goethe ‘O belo é raro’, poderemos dizer o mesmo das grandes obras
de ficção, como as criadas por Machado de Assis e Graciliano Ramos. Raras, mas
possíveis em qualquer tempo. Mas não será ocioso lembrar que os dois
romancistas mencionados foram autodidatas. Hoje, certamente os meios de
instrução superior são muito mais acessíveis aos jovens de talento. Fiquemos à
espera de criadores do mesmo nível. Há boas promessas. Quem viver verá”.
Grande Bosi. Ótimo. No passo acima, o crítico
fala com a experiência de mundo e com a maturidade filosófica, por saber que o
real é inesgotável. Ele sabe que a vida não para, não se repete, nem mesmo nos
reflexos. Quem pensa que o mundo da cultura acabou, assim pensa a partir dos
textos das revistas brasileiras. Mas a imprensa muito longe se encontra da
terra criadora do Brasil. Quem quiser saber o novo do Brasil, há de alcançá-lo
por meios marginais, pela web, por exemplo, porque a criação está fora do
circuito. O lugar insubstituível da literatura, como o lugar da reflexão sobre
o destino humano, está fora do circuito de modo absoluto.
Para ficar no que julgo ser a expulsão mais
eloquente das páginas e da telinha, escrevo que o lugar insubstituível da
literatura, como o lugar da reflexão sobre o destino humano, na grande imprensa
é que está fechado. Daí vem um vazio de onde não se ouve nem um gemido. Para a
mídia, a criação está morta. É impossível, tornou-se quimera acordar um dia e
ler nas páginas de qualquer jornal ou revista do Brasil, em um cantinho no chão
da folha, algo como estas linhas de
Manuel Bandeira:
Poema só para Jaime Ovalle
Quando hoje acordei, ainda fazia escuro
(Embora a manhã já estivesse avançada).
Chovia.
Chovia uma triste chuva de resignação
Como contraste e consolo ao calor tempestuoso da
noite.
Então me levantei,
Bebi o café que eu mesmo preparei.
Depois me deitei novamente, acendi um cigarro e
fiquei pensando...
- Humildemente pensando na vida e nas mulheres
que amei.
Ou mesmo como, para
encerrar, o que uma vez falou Alberto da Cunha Melo, ao declarar o bem maior e
mais duradouro que um diamante, e por isso mesmo sem preço e sem mercado:
“O PRESENTE
O que hoje recebes
e não podes pegar, guardar
em panos e papéis laminados,
é imperecível,
presente onipresente.
Estás com ele na chuva
e não temes que se desfaça.
Estás com ele na multidão
e não o escondes dos mutilados.
O que não existe para os homens
deles estará protegido,
o que os homens não veem
não poderão espedaçar.
Eis o que não te denuncia
porque não tem face
nem volume para ser jogado no mar.
Eis o que é jovem a cada lembrança
porque não tem data
e série, para envelhecer
O que hoje recebes
não pode ser devolvido”.
* Escritor, jornalista,
colaborador do Observatório da Imprensa, membro da redação de La Insignia, na
Espanha. Publicou o romance “Os Corações Futuristas”, cuja paisagem é a
ditadura Médici e “Soledad no Recife”.
Tem inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao ensino em colégios
brasileiros.
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