quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

Lapso de memória

* Por Pedro J. Bondaczuk

(Conto)

Revirando velhos papeis, espalhados, em desordem, em uma gaveta da minha escrivaninha que eu não arrumava há anos – talvez uns dez se não mais – encontrei um nome, rabiscado às pressas, no verso de um maço de cigarros da marca Luiz XV, seguido de um endereço de determinada rua do bairro paulistano do Brás. Estava escrito, apenas: “Márcia, Avenida Celso Garcia, 1.800”.

Cocei a cabeça, intrigado, e tentei lembrar-me do que se tratava. Pensei, pensei, pensei e nada. Tanto o nome, quanto o endereço não me diziam coisa alguma. Gastei um tempão matutando, tentando decifrar o enigma. “De quem se trata? E o que significa esse endereço?”, perguntei-me um sem número de vezes, em vão. Depois, como não conseguisse, mesmo, ter sequer vaga idéia do que se tratava, amassei simplesmente o papel e joguei-o no cesto de lixo do escritório, junto com notas fiscais antigas e outras anotações que haviam ficado inúteis, por se referirem a questões já resolvidas.

Não sei por que, todavia, aquele nome e aquele endereço continuavam me incomodando, martelando no fundo da memória, que teimava em negar esclarecimento.

“Márcia... Caramba, quem será? Minha prima, certamente, não é, pois esta, quando o lembrete foi escrito, era menininha e, ademais, não morava na Celso Garcia”, pensei, cada vez mais aflito por não conseguir lembrar de nenhuma outra pessoa com esse nome. “Seria alguma velha namorada? Seria aquela morena, colega de classe no segundo científico, aquela por quem eu era apaixonado, jogadora de vôlei e que não me ligava a mínima? Não! Essa sempre morou em São Caetano. Esnobou-me e nunca me deu abertura. Não me daria, por conseqüência, nenhum endereço e ainda mais do Brás”, especulei com meus botões.

Insisti em forçar a memória na tentativa de lembrar qualquer detalhe que me esclarecesse quem era essa mulher e por que eu havia anotado seu endereço. Embalde.

A letra, sem dúvida, era a minha, meio cifrada, escrita às pressas, com acentuada inclinação para a esquerda, característica peculiar da minha caligrafia de canhoto, um tanto quanto desleixada, embora houvesse quem a achasse bonita, ou pelo menos dissesse isso. Mas quando, onde e principalmente por que aquele lembrete fora escrito? Não sabia? Ou melhor, não lembrava.

“Seria alguma conta a pagar?”, especulei. “Não, não pode ser! Ademais, há anos que não tenho nenhum negócio em São Paulo e sequer vou para a cidade”, concluí. “Aliás nunca tive tantos interesses assim na paulicéia. E ainda mais no Brás, bairro que eu mal conheço, no qual passei apenas uma vez ou outra, de passagem, casual e episodicamente”, ponderei. “Não, definitivamente não se trata de nenhuma dívida”, concluí.

Até que de súbito, quando não estava mais sequer pensando no lembrete, no nome anotado nele e no respectivo endereço, num lampejo, lembrei de quem se tratava. “Eureka! Como pude esquecê-la! Claro, a Márcia! A mais estranha e perturbadora criatura que conheci!”, exclamei, num desabafo, que assustou a empregada que estava no cômodo ao lado e que perguntou o que eu queria e se estava passando bem. Respondi com um palavrão, embora apenas resmungado.

Cruzamo-nos num trem da antiga (e extinta) Companhia Paulista, com destino a São Paulo. Na ocasião eu já morava em Campinas, cidade para a qual havia me mudado de mala e cuia para trabalhar e estudar e da qual nunca mais saí. Ainda moro nessa metrópole interiorana.

Márcia já vinha do Interior, parece-me que de Panorama, ou coisa assim – já faz tanto tempo! –, quando embarquei no vagão em que ela estava. Eu ia viajar para São Paulo para visitar meus pais, que então moravam em São Caetano do Sul, cidadezinha-satélite da Capital, situada na região conhecida como ABC. Desse detalhe eu me lembro.

Nunca duas pessoas estranhas, que acabaram de se conhecer, tinham mostrado tamanha e mútua afinidade como nós dois. Tudo começou, rigorosamente, por acaso. Nossos olhares cruzaram-se, casualmente, assim que entrei, apressado e à procura de um lugar para sentar, no vagão de primeira classe. Era véspera de feriado e o trem estava lotado.

Márcia olhou-me, a princípio impessoalmente, como a gente sempre faz ao fitar um estranho. Depois, deteve-se, teimosamente, em mim, fixando-me, medindo-me da cabeça aos pés, num exame tão meticuloso que chegou a me incomodar. Discretamente, busquei verificar se havia alguma anormalidade, alguma coisa de incomum em minha roupa ou na minha aparência. Não notei nada de diferente que pudesse chamar a atenção das pessoas.

A braguilha da calça estava abotoada (às vezes, na pressa de sair de casa, a gente termina por deixá-la aberta e acaba passando cada vexame!), a camisa estava limpa, impecavelmente passada e com todos os botões no lugar; os sapatos estavam engraxados, davam, até, para alguém se espelhar em seu brilho. Eu poderia dizer, portanto, que no meu estilo de me vestir, na base do bem à vontade, estava até que razoavelmente elegante. “Não, não é a roupa que está chamando a atenção dessa deusa morena”, havia concluído na ocasião.

“Vai ver que ela está me confundindo com algum conhecido”, ponderei, um tanto incomodado com o persistente exame que os olhos de Márcia teimavam em me fazer.

A um sinal dela, sentei-me ao seu lado. Dela emanava um perfume inebriante – agora me recordo – delicioso, uma mistura de alfazema com canela, ou algo assim. A memória olfativa nunca falha. Podemos esquecer pessoas e circunstâncias, e esquecemos mesmo com freqüência, mas nunca nos esquecemos de um aroma. Eu, pelo menos, jamais esqueço.

Não sei dizer quem iniciou a conversa. O fato é que, de Campinas a São Paulo, fomos entretidos num papo fabuloso, que em momento algum esteve pontilhado por hiatos de silêncio, em que detalhamos, além de nossas mútuas atividades, nossos gostos pessoais, nossas expectativas, nossos projetos e outras tantas coisas, como que numa confissão dessas que se vê em filmes de espionagem, sob influência hipnótica ou sob o efeito do soro da verdade.

Eu falava de coisas que jamais havia dito a ninguém e nunca falaria, principalmente com estranhos. Ela anuía e buscava extrair mais detalhes, demonstrando o que me pareceu de genuíno interesse sobre tudo o que eu tagarelava. E aquele perfume! Era de enlouquecer!

Márcia, todavia, pouco dizia a seu respeito, algo que pudesse me fornecer alguma pista, uma idéia que fosse, mesmo que pálida, sobre quem ela era e o que pretendia de mim (se é que quisesse algo, sei lá). Impetuoso, eu queria beijá-la, abraçá-la, desnudá-la, perder-me naquele corpo perfe4ito e escultural. Claro que sequer insinuei esse desejo. Estava, todavia, queimando de desejo, tendo uma gloriosa e irresistível ereção.

Márcia era uma das pessoas mais bonitas que eu havia visto até então (e nunca mais vi outra que sequer chegasse perto da sua beleza até o dia de hoje, passadas décadas daquela experiência). Por isso, não entendo por que a esqueci por tanto tempo. Era uma dessas pessoas inesquecíveis. É provável que meu subconsciente achasse que fora simples miragem, delírio ou algo que o valha e que nunca tenha existido. Mas... existiu. Prova era aquele recado, rabiscado no verso de um maço de cigarros Luis XV, não somente com seu nome, mas também com endereço.

Márcia era morena, de olhos surpreendentemente azuis, de uma candura comovente, voz aveludada, ligeiramente rouca, que a tornava deliciosamente sensual. Além do que, tinha o porte dessas deusas gregas, com formas proporcionais, com tudo, absolutamente tudo nos devidos lugares, E, como corolário, havia aquele perfume, que me embriagava, entontecia, conduzia-me ao êxtase. Lembrava-me, posto que vagamente, uma garota que conheci em Porto Alegre, anos antes, de quem fiquei sabendo somente o primeiro nome, Jeudi, e mesmo assim apaixonei-me perdidamente por ela. Márcia, porém, conseguia a façanha de ser ainda mais bonita.

A princípio, julguei que minha interlocutora fosse mulher de vida fácil, a despeito de seus trajes, seus modos, seu linguajar e postura sugerirem tratar-se de pessoa de educação refinada e de fino trato. Pensei que faria outra conquista barata, dessas que a gente faz com relativa freqüência quando se é moço e se tem boa aparência, como era o meu caso e que terminam (ou terminavam naquele tempo, quando os motéis ainda não haviam sido popularizados) em algum hotelzinho de quinta categoria e alta rotatividade, que então existiam aos montes em São Paulo.

No desenrolar da conversa percebi, todavia, que seu interesse por mim não era, digamos, “pecaminoso”. Nada tinha a ver com sexo e muito menos com prostituição. E, a bem da verdade, eu também já não cogitava mais em levar aquela deliciosa musa morena para a cama.

Márcia exercia sobre mim, naquele intervalo de uma hora e meia de duração do trajeto entre Campinas e São Paulo, o fascínio do desconhecido, da descoberta, da revelação, inclusive de mim mesmo. Era como se eu estivesse num confessionário, abrindo a minha alma e confessando meus pecados, posto que não somente eles, mas também meus sonhos, planos e esperanças. Não se mencionou, de parte a parte, nada que pudesse gerar algum mal-entendido, ou qualquer interpretação dúbia, das mútuas intenções. Era o encontro, paradoxalmente, mais casual e simultaneamente mais aguardado das nossas vidas. Era, conforme concluo hoje, o contato entre dois mundos semelhantes e provavelmente complementares.

Quase não percebemos quando o trem chegou à Estação da Luz, em São Paulo. A contragosto, nos levantamos e acompanhamos maquinalmente os demais passageiros na saída do vagão, depois nas escadas da gare e até à rua. E sempre conversando, e nos olhando nos olhos, rindo, felizes, como duas crianças inocentes, ou como amigos de longuíssima data, talvez inseparáveis companheiros de infância que, claro, não éramos.

Após duas novas (e imperceptíveis horas) de conversa, já na calçada, em meio a esbarrões de pessoas que passavam apressadas e distraídas rumo a seus destinos, nos demos conta de que precisávamos nos despedir. Cada um teria que ir para o seu lado, em busca dos próprios afazeres, adredemente programados. Só então lembrei-me de anotar seu endereço. Esvaziei um maço de cigarros Luiz XV no bolso e fiz a anotação no verso.

Prometi visitá-la oportunamente, o mais breve possível, “quando tivesse um tempinho”. Nunca fui. Passei meses tentando entender o que acontecera entre nós, sem que a sua imagem me saísse da memória e sem conseguir esquecer seu perfume embriagador. Cheguei, até mesmo, a duvidar que nosso encontro havia ocorrido, que Márcia existisse e a supor que tudo não havia passado de um delírio, de uma fantasia, de uma alucinação. Mas estava ali, na minha carteira, o seu endereço, anotado no avesso de um maço de cigarros Luís XV. E isso era real, realíssimo, sem dúvida.

Márcia... Márcia do quê? Qual sua idade? Sabia só que era secretária bilíngüe de uma multinacional famosa. Mas era só. Não dispunha de nenhuma outra informação a seu respeito, de qualquer coisa que pudesse servir para identificá-la.

Nunca mais soube nada dela, nem do seu paradeiro, nem quais eram seus amigos e muito menos qual era sua família e, principalmente, onde morava. Tive escrúpulos (ou talvez fosse preguiça) de escrever-lhe, mesmo que um reles bilhete, para o endereço que ela me havia dado. Com o passar do tempo, até me esqueci dele e, também, de quem mo havia fornecido. Acabei relegando esse lembrete à gaveta da minha escrivaninha onde guardo todo o tipo de notas e papeis de pouco uso, que reluto em jogar fora por achar que possam ter alguma serventia. Na verdade, nunca têm. E ali ele permaneceu por anos, por décadas, até o dia de hoje, quando, nem sei por que, resolvi livrar-me de lixos acumulados e de fantasmas do passado.

Márcia... Claro, Márcia!!! Mas que cabeça a minha!!!

* Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos livros “Por uma nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos), além de “Lance Fatal” (contos) e “Cronos & Narciso” (crônicas). Blog “O Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com. Twitter:@bondaczuk

5 comentários:

  1. Tanto tempo depois, demora em se lembrar e depois tantos detalhes vindo a tona. É mesmo incompreensível um encontro assim.

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  2. Quanto mais o tempo passa, mais nos lembramos de coisas de um passado remoto, e cada vez com maior número de detalhes, e menos do passado recente (do ontem, por exemplo). Não sei por que isso acontece, mas sei que acontece. Daí ser verossímil que o personagem do conto, ao lembrar-se de uma pessoa que havia esquecido por tantos anos, fazê-lo com tamanha riqueza de detalhes. Na vida real, isso acontece, e com freqüência, comigo. Obrigado pelo comentário, Mara.

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  3. Quanto mais o tempo passa, mais nos lembramos de coisas de um passado remoto, e cada vez com maior número de detalhes, e menos do passado recente (do ontem, por exemplo). Não sei por que isso acontece, mas sei que acontece. Daí ser verossímil que o personagem do conto, ao lembrar-se de uma pessoa que havia esquecido por tantos anos, fazê-lo com tamanha riqueza de detalhes. Na vida real, isso acontece, e com freqüência, comigo. Obrigado pelo comentário, Mara.

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  4. Quanto mais o tempo passa, mais nos lembramos de coisas de um passado remoto, e cada vez com maior número de detalhes, e menos do passado recente (do ontem, por exemplo). Não sei por que isso acontece, mas sei que acontece. Daí ser verossímil que o personagem do conto, ao lembrar-se de uma pessoa que havia esquecido por tantos anos, fazê-lo com tamanha riqueza de detalhes. Na vida real, isso acontece, e com freqüência, comigo. Obrigado pelo comentário, Mara.

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  5. Quanto mais o tempo passa, mais nos lembramos de coisas de um passado remoto, e cada vez com maior número de detalhes, e menos do passado recente (do ontem, por exemplo). Não sei por que isso acontece, mas sei que acontece. Daí ser verossímil que o personagem do conto, ao lembrar-se de uma pessoa que havia esquecido por tantos anos, fazê-lo com tamanha riqueza de detalhes. Na vida real, isso acontece, e com freqüência, comigo. Obrigado pelo comentário, Mara.

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