* Por Fernando Yanmar Narciso
Seria um novelão cheio de clichês, se não tivesse acontecido de verdade. Naquela tarde de 24 de Junho de 1995, todo o país se levantou das arquibancadas, cadeiras e tamboretes, berrando seu nome em uníssono. “Nel-son! Nel-son! Nel-son!” O grande rei, aclamado unanimemente por todo o reino, como nos tempos de Camelot.
Nelson Mandela foi o último grande estadista do mundo. Todo país precisa de alguém minimamente parecido com ele, o Brasil, então, nem se fala. Ele, que passou 27 anos de sua vida preso, numa cela onde mal cabiam duas pessoas, convivendo todas as noites com um balde de fezes ao lado dos trapos com os quais tentava dormir, quebrando pedras sob um sol escaldante e entupindo os pulmões de poeira. Se dependesse de seus inimigos, estaria vivendo assim até hoje. Em 1990, o velho guerrilheiro, símbolo-mor da luta pela igualdade racial, enfim viu o sol do lado de fora da Ilha Robben, quando seu polêmico cárcere terminou. Para findar sua jornada pela paz, ele traçou duas metas: Recriar a África do Sul através da 1ª eleição democrática para presidente em 1994, da qual saiu vitorioso de maneira desconcertante, e recriar seus compatriotas, unindo negros e brancos em torno de um mesmo sonho. E ele escolheu a forma mais improvável para fazê-lo.
Já chegaram a ver uma partida de rúgbi, ou de seu primo multimilionário, o futebol americano? Imagine 30 brutamontes lutando jiu-jitsu num gramado, com um ovo gigante entre eles. Acreditem ou não, seu torneio mundial é o 3º evento esportivo mais assistido do planeta. Originário da Holanda e praticado principalmente na Europa e na Oceania, ele também foi o maior símbolo da repressão na era apartheid, pois, na terra de Mandela, era um esporte praticado exclusivamente pelos africâneres, brancos nascidos em solo africano. O Springboks, time de rúgbi sul-africano, era tão odiado pela raça negra que houve até um boicote à seleção sul-africana em 1981 num torneio na Nova Zelândia, arqui-rivais deles nesse esporte, em retaliação aos crimes cometidos pelo governo branco.
Então, por que Mandela resolveu adotar um time e um esporte tão malvistos como a arma para unir a nação? Às vésperas da copa de 1995, que seria sediada no país, o ministério dos esportes pôs em pauta a votação do extermínio do time Springboks, por tudo de negativo que ele representava. No ponto de vista de Mandela, isso não deveria ocorrer, pois segundo ele, a sua extinção seria vista pelos brancos como uma provocação dos negros e poderia trazer de volta a guerra civil, sem falar que o funcionamento das instituições ainda dependia dos africâneres. Assim, chocando ambas as raças, começou seu plano de unificação.
Logo fez amizade com François “sósia do Sting” Pienaar, o capitão do time. Ao contrário de quase todos os outros esportes, onde o capitão ocupa meramente uma posição simbólica, no rúgbi ele é o segundo na hierarquia do time, um tipo de jogador/técnico. Mandela exigiu que François trouxesse o caneco para o país, usando o torneio como uma parábola para o que o país poderia se tornar caso o ganhassem. O problema é que, naquele ponto da história, o time não tinha nenhuma experiência internacional, e todos os especialistas apontavam que ele cairia ainda na primeira fase. Mandela foi, acreditem, o torcedor e defensor mais ilustre do time em todo o torneio.
A princípio, apenas os brancos estavam torcendo por seu amado time, mas conforme as semanas passavam e os Boks milagrosamente atropelavam cada time que se dispusesse diante deles, a curiosidade dos negros foi atiçada, de tal modo que, em sua histórica final contra a temida Nova Zelândia, não havia uma única pessoa, negra ou branca, andando pelas ruas do país. Estavam todos colados nas TVs ou nas arquibancadas. Se pedissem silêncio nos estádios, o país inteiro se calaria.
E tudo culminou naquele momento histórico onde todo o país saudou o seu líder, vestindo a camisa e o boné do antigo inimigo em pleno estádio Ellis Park, o monastério dos Springboks. De forma tão dramática como na decisão de pênaltis em que trouxemos o Tetra em 94, os dois times se anularam de tal forma que Pienaar e seus colegas só conseguiram decidir o jogo na prorrogação, a 1ª da história do torneio, pelo claustrofóbico placar de 15 a 12- Algo como um 5 a 4 no futebol-, disputado até o último apito. Mandela vibrou, Pienaar vibrou, o time inteiro vibrou e toda a nação, independente de raça ou credo, se abraçou de alegria e garantiu o bis de “Nel-son! Nel-son! Nel-son!” conforme o homem, o mito, a lenda regressava ao centro do estádio para presentear os nobres guerreiros com o caneco. O esporte não serve apenas para alienar a massa ignóbil, como os esquerdistas tanto apregoam, ou para mostrar quem manda no mundo, como o fazem nas olimpíadas. Ele também pode ter o poder de mudar o destino de uma nação...
*Designer e escritor. Site: HTTP://terradeexcluidos.blogspot.com.br
Apenas com embasamento e conhecimento de causa é possível escrever um texto desses, quase um artigo analítico sobre as atitudes de Nelson Mandela. Parabéns!
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