domingo, 11 de março de 2012







Pedra polida


* Por Ronaldo Bressane

Novo disco de Ortinho traz sangue de barro ao pós-manguebeat


Poetas, seresteiros, namorados, correi. Correi... mas de medo: eis que Ortinho retorna à praça. Mais antiparnasiano do que nunca, e mais polido do que jamais, o cantor e dublê de metralhadora giratória afinal foca o alvo em Somos, seu segundo álbum solo. Sempre áspero e intratável como o cacto do poema de Manuel Bandeira, dessa vez o caruaruense (nascido Wharton Coelho) deu uma enquadrada na composição. O que não quer dizer que amansou o som – e sim que o direcionou para canções mais exatas.

Meia culpa é da banda de apoio, um entrosado combo firmado em SP que também acompanha seu conterrâneo e parceiro Junio Barreto. Gente como o elegante Dudu Tsuda nos teclados, o inventivo Gustavo Ruiz na guitarra e no violão, o bem-temperado Marcelo Monteiro no saxofone e na flauta, além do casal drum’n’bass Simone Soul e Alfredo Bello (este, responsável pela co-produção e por aleatórios e surpreendentes cavaquinho, moog, baixo e teclados). Os guitarristas Tonho Penhasco, Luiz Chagas, os baixistas Mazinho Lima e Paulo LePetit, o pandeirista Mestre Nico, os multiinstrumentistas Sergio Cassiano e Max de Castro, fora a incrível Orquestra Popular da Bomba do Hemetério, nos metais, completam a frilarmônica ortiniana – elenco nada fácil de reunir sob o mesmo laser.

A história de Ortinho começa à frente do Querosene Jacaré, uma das raras bandas de rock’n’roll autênticas surgidas à época do manguebeat. Com influências de Ave Sangria, Lula Côrtes e do psicodélico Alceu Valença (primeira fase), Você não sabe da vida um terço (1998) apresentou o impulsivo vocalista aos palcos do Brasil – seu carisma foi até parar no cinema, como se vê pela atuação como cangaceiro no filme Baile perfumado (de Lírio Ferreira e Paulo Caldas). Parceiro de Chico Science, Otto, Junio Barreto e Arnaldo Antunes, Ortinho aproximou sua veia roqueira do experimentalismo que bebia nas fontes da tradição, colorindo suas composições de côco, ciranda, forró, além de, lógico, maracatu e samba. O resultado foi o elogiado álbum Ilha do destino (2002).

Depois de quatro anos preenchidos por shows, gréias, exílios criativos e até programas de rádio e novas atuações no cinema (é impagável sua performance como traficante em Árido movie, de Lírio Ferreira), o caruaruense retorna com este afiado Somos. Que já abre com uma declaração de guerra: “Vai começar a cirandagem/.../Vou tratar do resto/ Nada vai faltar”, canta na festeira “Cirandagem”, misto de ciranda com malandragem, funkeada e cheia de slide guitar. A festa prossegue em tom de rock sofisticado com “Terra tremeu” – onde surge um dos melhores achados poéticos do cantor: “a banda de pifo pifou”.

Na seqüência, vem o primeiro dos auto-retratos do artista quando jovem cão: “Correu solto”. Como já aparecia em “Ilha do Destino”, aqui Ortinho apresenta-se como a voz dos perdidos na multidão, aqueles que não se encaixam em qualquer gaveta. “Acordava todo dia num colchão que não conhecia/ E agora, nego, o que é que tu vai fazer?” é o “E agora, José?” do nosso caruaroots. O álbum se encaminha para um de seus pontos altos com “Muvuca”, funk-embolada com ressonâncias de Tom Zé. O baixo vai para um lado, o cavaco pro outro, a bateria pra um terceiro – e o que mais surpreende no aguçado arranjo é que a única coisa reta é o vocal. Na letra, é quase o oposto de “Correu solto”, pela positividade: “Na corda curo a ressaca/ E quando acordo com a macaca/ Mudo a minha conduta/ Pra sair dessa muvuca”.

Se quisesse, Ortinho poderia ser um dos melhores compositores de côco do mundo – fazer um côco pro caruaruense é mais fácil que pegar ônibus errado –, mas ele prefere inventar uma plantação de plástico. É o que acontece na safada “Coco de plástico”, com o auxílio luxuoso de Pupillo (o batera da Nação vai só no contratempo: o menino é um verdadeiro mestre do sem-pulo). De extração reginaldorossiana, “Pano da alma” é quase um iê-iê-iê nonsense. Rossi ecoa ainda no brega de “Avenida Norte”, jovem-guarda com viés social (se isso fosse possível). Versos singelos em sua suburbanidade – mas a singeleza também sabe ser de elementar intuição: “E os ônibus lotados/ levando todos a qualquer lugar/ Não sei por que uns passam tanto/ e outros demoram tanto a chegar”.

A voz terraplenada de Ortinho consegue até ser doce, como em “As flores de sua cabeça”, linda parceria com Lula Côrtes, uma quase-valsa tropicalista que ecoa Novos Baianos. Ortinho vem pegando mais leve, é o que se pensa. E é o que se compreende na jazzística “Desabafa” (parceria com Lula Queiroga) – como se o compositor falasse pra si mesmo: fique peixe, mano. Antipenultimamente, o discípulo de Lia de Itamaracá ataca com outra ciranda: a experimental “Ciranda crônica”, tendo Max de Castro como sideman. Em registro mais grave e de melodia difusa, é uma verdadeira cirandark.

Pra fechar, uma marcha que foi hit no carnaval pernambucano 2006: “Não me ames”. Armado com Ciron, este frevo-exaltação que lembra o clássico maldito “Não me mande flores” (Defalla) ou o “Ninguém me ama, ninguém me quer” de Antônio Maria (depende de quão etílicas forem suas memórias), nos faz perguntar quem, hoje, teria coragem de assinar versos assim: “Não me venhas com esses olhos rasos d’água/ Eu vou ficar dentro da sua casa/ Não vou deixar você dormir/ Eu sou troncho e não me entendo com as pessoas...”. Ladeado pela maravilhosa Orquestra Popular da Bomba do Hemetério, nosso Ortinho assim se afirma como pedra no meio do caminho da nova música pop brasileira. Pedra polida, ah, pois.

*Escritor, jornalista e editor. Edita a revista V (www.vw.com.br/revistav) e colabora com várias publicações, como Trip, Vogue e TPM. É um dos co-editores da coleção Risco:Ruído, da editora DBA, e do blog coletivo FakerFakir (www.fakerfakir.biz).

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