segunda-feira, 12 de março de 2012



O riso da depressão

* Por Rossana Brasil Kopf

“Mas nem sóde espinhos é feita nossa vida humana, como tampouco de rosas”

Depressão é um mecanismo psicológico que se desencadeia quando perdemos ou receamos de perder o amor ou a segurança. Pelas contingências da nossa vida, nosso primeiro contato com o mundo se realiza sob o signo da depressão. Bom efeito, antes de nascer o feto vive em situação paradisíaca, isento de qualquer tensão, com todas as suas necessidades automaticamente satisfeitas: a temperatura é ideal, a escuridão gostosa, o leito macio, os choques e barulhos só chegam amortecidos, o oxigênio e o alimento lhe são injetados diretamente na massa do sangue sem exigir de sua parte o mínimo esforço. No seu diminuto éden o bebê está com tudo e é muito compreensível que daí não queira ser desalojado. Mas a natureza planejou agradáveis repelões o expulsam da doce morada. Corta-se a fonte de suprimento espontâneo, o cordão umbilical e ele tem de forcejar com seus inábeis pulmões para absorver o ar, tem de succionar para obter o alimento que nem sempre vem na hora exata de sua fome, deixando-o muitas vezes com uma dolorosa sensação de vazio nas vísceras, o berço é menos confortável que o útero, surge às ingratas alternativas de frio e calor, a luz lhe incomoda a vista, os ruídos lhe ferem os tímpanos sensíveis; assim ele começa sua atribulada existência extra-uterina com a mais profunda vivência de frustração e desamparo.

O grande trauma do nascimento, cronologicamente, o primeiro, é sem duvida, o mais inarredável de quanto nos toca suportar, constituir a chamada depressão básica, modelo de todas as depressões futuras. Mais tarde, no correr da vida, cada vez que algo nos acena com uma ameaça (real ou imaginária) de privação do amor ou da segurança, a memória inconsciente evoca o traumatismo inicial. Inclusive a afirmação de que a dor amadurece o espírito não significa apenas que o sofrimento (como, por outra parte, também a alegria) acrescenta nossa experiência vital, ela é igualmente válida no sentido de que a cada novo padecimento, psicologicamente tornamos a nascer, e através de sucessivas penosas vamos nos adestrando com crescimento, eficácia na tarefa de elaborar e vencer aquele trauma padrão. Mas nem só de espinhos é feita nossa vida humana, como tampouco de rosas. O carinho materno, os cuidados, a solicitude, pouco a pouco demonstram ao bebê que ao mudar de habitat ele ganhou mais do que perdeu. Com essa comprovação ele dá o primeiro passo no caminho de um futuro desenvolvimento feliz, de uma boa adaptação à realidade com todos os seus altos e baixos. Ainda o esperam outras vicissitudes: a maior seria o desmame, interrompendo esse prazer, união física entre o lactante e o seio materno, depois, a eventual chegada de irmãozinhos provoca uma irrupção de ciúmes e o angustioso receio de vir a ser preterido, mais tarde, no seu primeiro dia de escola, ele deixará o tíbio aconchego do lar para ir enfrentar lá fora o desconhecido e desincumbir de seu ainda modesto (sob um ponto de vista adulto), varias responsabilidades. Já a essa altura as perdas são menos importantes, a psique já aprendeu, em parte, a manejar com elas, as compensações são maiores e mais imediatas e, em consequência, a decorrente depressão é leve, às vezes quase imperceptível. Na vida adulta, as separações, as mudanças de vida, de emprego e de condições, a tal disputa com um amigo, a decepção no amor, em suma, tudo o que implique em incerteza ou em corte de nexos já estabelecidos, ocasiona igualmente certo grau de depressão, proporcional à magnitude afetiva dos fatores em jogo e, também, a saúde psíquica do individuo. Com o abatimento, apatia, o decréscimo do estímulo vital, nada nos atrai nada nos interessa, a presença alheia pouco nos conforta, preferimos ficar a sós, cultivando lembranças. Vez por outra, renasce a pungência da dor em subidas aguilhoadas, e logo é de novo a tristeza o acabrunhamento, o espírito moroso, a letargia da vontade. Com o correr do tempo o quadro vai se atenuando. Pouco a pouco, a força de sofrer, o sofrimento se esgota, a vida reclama seus direitos.

Um dia, sem querer, a gente larga uma gargalhada espontânea e gostosa. E logo se surpreende quase se recrimina a por ter rido assim. Depois se deixa absorver por um livro, uma boa conversa, um filme, e de repente constata que durante algumas horas a tristeza ficou esquecida, relegada o segundo plano. A companhia dos amigos é uma coisa muito importante, você passa a ver e a ser um consolo e, por fim, um prazer. Gradualmente a gente vai redescobrindo os rostos, o gosto pelo sol, pelas cores que o mundo nos oferece e o desejo de reintegrar-se a ele. Isso se chama cura. A fase da depressão foi superada com êxito, a psique recuperou seu antigo vigor, o amor está de novo em disponibilidade, livre para fluir em direção a outros objetos. Observando-se as características do quadro depressivo, chama atenção o fato de corresponderem, sem tirar nem por, aos tormentos que afligem o solitário. Também ele passa da revolta impotente à morna passividade, do amargor à prostração, do desespero ao marasmo da melancolia, da indiferença, do desapego à vida.

Não é de surpreender que os sintomas sejam idênticos, pois provam em ambos os casos da mesma fonte: a solitude nasce da depressão. Durante a fase aguda, o deprimido se alheia e se retrai, absorto na dor, interrompe seus laços com o mundo externo, vive para dentro, é o paulatino restabelecimento desses laços que assinala o começo do processo de recuperação. O solitário, conforme salta a vista, é um deprimido que não consegue recuperar-se, transformou sua crise num estado crônico, permanente, um modo de viver. O drama da solidão ocorre nas pessoas que no seu foro íntimo, inconsciente, continuam lamentando uma grave perda sofrida, à qual, conscientemente, talvez não atribuam importância, ignorando-a mesmo ou pelo menos as supondo já cicatrizada. Com a maior parte das energias psíquicas canalizadas para o processo interior, ligadas às imagens que estão dentro, pouco lhes resta de potencial afetivo para dedicar-se aos demais, por sua vez, a falta de vínculos com seres de carne e osso, o isolamento real em que vivem, vem a reforçar a depressão. A cura da depressão tem início no momento em que o sofrimento se esgota. Porem só se esgota o que for de algum modo usado ou submetido ao desgaste do tempo.


• Psicanalista, especializada em dependência química

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