quarta-feira, 7 de março de 2012



O Artista

* Por Rubem Costa

1928 ou 29? Do ano não me lembro bem, mas com certeza era ainda tempo de cinema mudo. O sonoro já se anunciava no Brasil, mas não chegara a Campinas. Disso me recordo, porque menino de calças curtas, lavando xícaras e copos, eu trabalhava todas as noites no bar anexo ao Cine República, localizado na Rua Costa Aguiar, esquina de Francisco Glicério, com frente para o Largo da Catedral. No botequim havia café, leite, balas, bolinho de bacalhau, água mineral, cerveja e cachaça, o essencial para atender à freguesia do cinema nos intervalos para troca das fitas. A interrupção era obrigatória, já que os filmes vinham em rolos separados que exigiam uma pausa para substituição na máquina de projeção. Era o momento que os frequentadores acorriam ao “cafezinho”. Para distrair os que ficavam na sala, havia a orquestrinha dos irmãos Di Túlio que nunca descansava, continuando a executar valsinhas dolentes.

Do bar, enquanto esfregava as xícaras, ouvia Mário, o mano mais experiente, dedilhar empolgado ao piano a Ave Maria de Erothides Campos ou Tardes de Lindóia de Zequinha de Abreu. Mas, naquele ano o som dominante era outro — “yes sir, that’s my baby” — uma forma diferente de expressar que já denunciava a invasão da música americana. Xodó que tomara conta dos salões tupiniquins ao ritmo alucinado do “charleston”, dança frenética em que — bestificando o recato da velha burguesia —as mulheres, cabelos “à La garçonne”, davam seu primeiro passo de independência, sacudindo-se nos bailes com vestidos curtos de cintura baixa e franjas atrevidas. Escrúpulo antigo de lado,agitavam-se em frenesi enquanto as mãos cruzavam e descruzavam-se elétricas sobre os joelhos, mostrando as pernas provocantemente recobertas de meias transparentes cor de pele para dar a impressão de estarem nuas.

Nos salões e nas ruas, em toda parte cantava-se uma macarrônica versão do refrão piloto da nova moda:

“Ele é bonitinho,
usa bigodinho,
paletó curtinho,
calça ‘charlestão’”

Estribilho que derretia os marmanjões. A moda masculina estampada na letra se distinguia pela contrafação das peças na indumentária. Um paletó apertado mal chegado à curva das nádegas e calças compridas que se abriam em boca de sino cobrindo os sapatos, espanando o chão. Os almofadinhas se deliciavam com a canção, caprichando no bigodinho. E se enfunavam na jaqueta curta acima da bunda quan do chamados de bonitinhos. Um clichê de Rodolfo Valentino, primeiro “sex-symbol” do cinema americano, galã de românticas longas-metragens que, embora falecido em 1926, levava ainda ao delírio adolescentes e solteironas casadoiras. A par do drama, numa mensagem inexcedível de calor humano, povoava as telas a comédia que tinha em Charles Chaplin o seu avatar. Carlitos, como então era chamado, foi um gênio, o maior talento do cinema de todos os tempos: alegrava as crianças fazendo rir e ensinava adultos, desvendando, no silêncio da ação divertida, os assombros da alma — amor, ódio, medo e dever — emoções eternas que dominam o ser e definem a vida.

Foi com ele, eterno vagabundo sonhador, e Greta Garbo, mística encarnação de sedução e mistério, que a tela sem fala deu nova dimensão à capacidade expressiva , permitindo ao cinema o conceito de sétima arte. Na forma e na intenção traduzia a linguagem do gesto e a transfiguração facial como retrato dos sentimentos que em surdina envolvem a alma da gente. Sem efeitos sonoros, sem cores, sussurrando anseios e sonhos no confronto do preto e branco, prescindia dos recursos sofisticados da moderna ciência, mas projetava na tela a essência do homem. Deriva daí a emoção de saber que na 84ª edição da Academia de Cinema, esta semana em Los Angeles, foi contemplado com a premiação maior e mais quatro Oscar o filme de Hazanavcious, O Artista, nova versão da “fita” antiga em preto e branco que celebra o cinema mudo na hora de sua superação pelos novos recursos técnicos. Um reencontro com a arte que nos primórdios de século 20 mudou a visão cultural do mundo.

* Rubem Costa é escritor e membro da Academia Campinense de Letras.

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