quarta-feira, 14 de março de 2012







A Hora da Estrela minuto a minuto

• Por Mara Narciso

Mulher de existência nula, de aparência suja, alguém invisível, pessoa cujo presente inexiste, sem nada a contar ou pensar, gente de pouca inteligência, que nem tem consciência da sua mediocridade. Aquela que carrega todas as marcas da exclusão, sem alguém ou atenção de ninguém, sem coisa alguma, sendo o desapontamento e o vazio existencial. Vivia uma vida subterrânea que nunca tinha floração. Pois esta é Macabéia, a personagem central de A Hora da Estrela, de Clarice Lispector.
Ivana Ferrante Rebello, a doutora em Literatura pela USP que nos falou sobre este livro no Clube de Leitura Felicidade Patrocínio, afirmou que esta é a história da própria Clarice, de origem judia, que em diáspora da Ucrânia ao Brasil não encontrava seu lugar no mundo. Assim iniciou: “A Hora da Estrela não é afago na alma, é bofetada, é a metafísica do instante. Entender o que há dentro de Clarice Lispector é indispensável para compreender a densidade da sua escrita. Após sofrer todo tipo de repressão, Clarice foge para a literatura. Gestou e escreveu o livro, estando doente. A forma de nos contar se arrasta. O silêncio fala alto, contradiz todos os outros momentos, e causa impacto. Os 12 títulos da obra são para criar perguntas e causar angústia. Não é um livro de esperança. É de interiorização. É uma história simples, mas o modo de narrar é excepcional.”
A abordagem da palestrante, cujo fragmento acima dá uma pálida ideia do que foi sua exposição de 50 minutos, explica por que mais de 50 pessoas largaram seus programas televisivos e foram estudar literatura num domingo à noite. Continua Ivana: “O que conta é o estilo, palavra que vem de estilete, aquele que fere. O narrador masculino, Rodrigo S. M. (sou Macabéia), usa uma escrita dura e seca, com a técnica do afastar-se para ver melhor”. Rodrigo, que também é personagem, justifica-se por boas páginas o motivo de escrever sobre tal pessoa, completamente desprovida de ornamentos, sejam físicos, sejam intelectuais. “No fundo o narrador tem muito de Clarice. Conta a história e a criação dela. O leitor se embrenha. A leitura do gozo amplia o vazio. O narrador diz “estou oco dessa moça” e o leitor se torna oco também, quando a falta é presença, e a inexistência causa susto”, diz Ivana.
Ao contrário da palestrante, não encontro expressão para dizer como é a sua maneira de falar. As sequências de raciocínio acima citadas são colagens de algumas frases que copiei. A maneira de ela explanar é muito mais forte. Sabe quando uma ventosa entra em contato com algo e se adere perfeitamente à outra superfície, fazendo um barulho? Assim são as palavras que Ivana encontra para fazer a frase. Conversa como quem fala em versos. Pegou o talento e desenvolveu essa habilidade. No tempo de uma aula, fechou o círculo e acabou com a vida de Macabéia, a mulher nada, a que não foi, não é e nunca será.
Nordestina largada no Rio de Janeiro, é péssima datilógrafa, mal sabe ler e escrever, mas adora a palavra efemérides, sem lhe saber o significado. Tem ombros de cerzideira, aquela que faz a escrita invisível juntando partes que não se encaixam. Macabeus é o povo ganhador e Macabéia é a desfiguração. O nome escolhido determina a pessoa, sendo uma mulher assexuada, lembra a maçã sem adornos, ou a fruta do sexo sem o sexo. Desajeitada, mela o papel que escreve, não tem nada, nem mesmo pensamentos. Arruma um namorado, de nome Olímpico, que simboliza perfeição, o contrário do que a moça era. A vida nunca acontece para a donzela, que perde o emprego e o namorado para uma amiga cheia de carnes (coisa que ela também não possuía). Vai morar com várias Marias em um quarto de pensão, pois qualquer mulher é Maria e elas não tinham face. A falta de perspectiva angustia o leitor, mas não a Macabéia, que parece nem ter sentimentos.
“Clarice Lispector dedica a obra a si mesma, e sente uma espécie de dor de dente durante toda a história”, garante Ivana. E vamos seguindo-a no seu aparente delírio viajando por um livro já lido e, no entanto, não totalmente entendido. Fazer um estudo literário não é ler a obra para a plateia, não é contar o enredo. É mostrar o que não é óbvio, e o que o leitor comum não vê, pois depende do que não está escrito, das circunstâncias do escritor e da vida dele por ocasião da escrita. Enquanto os mistérios vão sendo revelados, a vontade de reler vai se tornando necessidade.
Para Ivana, a história é um pretexto para usar uma linguagem que incomoda. Clarice não cria segurança, semeia incertezas e cria um oco, uma espécie de vácuo que faz sua literatura funcionar. Mais palavras entre aspas, pois Ivana diz: “A arte não é a vida. O silêncio fere como um grito. A autora usa a deficiência como recurso narrativo. Macabéia tem uma vida inócua. Usa o vazio como semelhança do pleno. A palavra é jogada como escape e a pobreza sai enfeitada. A exiguidade da personagem aproxima-a da santidade. Tira todos os acessórios”. E arremata com uma frase do livro: “Macabéia tão jovem, e já com ferrugem”.
Vaidosa, tentando ocultar cicatrizes de queimadura nas mãos, Clarice Lispector, que ficou órfã muito cedo, sendo criada por uma tia que a humilhava, encontra em Macabéia uma maneira de exteriorizar toda a sua complexidade numa história que, ao contrário das demais, é cronológica, mas é pesada. Na sua vida de capim, aquele que quanto mais se tira, mais cresce a sua força, incomoda, e a alma não cabe dentro do corpo. Assim, o livro ultrapassa suas páginas, com a reles vida de Macabéia: frustrada, infeliz, abandonada.
Na densidade da literatura clariciana, que é, para Ivana, uma sessão de psicanálise, Macabéia, a mulher sem futuro, procura uma cartomante, pois sua vida não existia. Sai de lá inebriada, grávida de boas novas. Ficará rica, encontrará um amor, um estrangeiro, de olhos azuis, verdes ou pretos. Porém, bêbada de encantamento, não vê a Mercedes vindo e morre atropelada por ela. Ironia do acaso, responsável pelos pequenos milagres, aí está a sua estrela, e apenas nesta hora, estatelada no asfalto, as pessoas olham para ela.
Quando lemos que no Brasil aumentaram-se a venda de livros, podemos até não acreditar, porém é natural termos esperança na redução da ignorância após uma palestra como esta. Em tempos de upgrade, a apresentação, depois de acontecida, torna-se um anexo indispensável à obra, tal a maneira como a enriquece. Quem acha exagero, desconhece como é admirável Ivana Ferrante falar da sua paixão, e na sua esteira apaixonar-se também. Dá vontade de reler com os olhos e os acréscimos interpretativos dela. Agora as suas palavras não são minhas, mas de toda a platéia que as engoliu. Já fazem parte de nós e da obra, naturalmente.

*Médica endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia Feminina de Letras de Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”-

2 comentários:

  1. Muito interessante seu texto, Mara. Li a mais recente biografia de Clarice Lispector, "Clarice,". Ali tive algumas pistas da loucura que foi a vida e que é a escrita desta mulher genial. Li, por enquanto, apenas um de seus livros - "Perto do coração selvagem". Depois deste seu texto, é claro que me entusiasmei a ler também "A hora da estrela". O paralelo final com a estrela da Mercedes-Benz é coisa de gênio. Um grande abraço e parabéns.

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  2. É natural achá-la genial, pois tudo o que escreveu é profundo e digno de nota. O interior dela parece um vulcão de emoções e sentimentos. Também preciso ler mais Clarice Lispector. Agradeço a passagem e comentário.

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