sexta-feira, 9 de março de 2012







Breves notas sobre Casa-Grande & Senzala

* Por Urariano Mota

Na internet, recebi uma boa provocação de um amigo, que me perguntou:

“E Gilberto Freyre? Casa-grande & senzala é do mesmo ano que Evolução politica do Brasil de Caio Prado. Gilberto Freyre pretende ter sido o primeiro a fazer uma leitura materialista da história brasileira. No caso, a base da concepção dele era o latifúndio monocultor de cana, o trabalho escravo e a casa-grande. Sobre essa base ele descreveu a sociedade senhorial brasileira. Mas apesar dele ter resgatado o negro brasileiro do mar de preconceitos em que vivia mergulhado, é tido como um autor conservador para dizer o mínimo. Gilberto Freyre, por exemplo, organizou o primeiro Congresso Afro-brasileiro e no entanto o atual movimento negro detesta Gilberto. Aguardo sua fala”.

Ao que respondi e recupero aqui:

Amigo, a sua provocação é maior que a minha competência em respondê-la. Mas vamos, nas medidas de minha (jn)capacidade e espaço curto desta resposta.

Casa-grande & senzala, dos livros de análise histórica surgidos no século XX, é para mim o que vai atravessar a nossa e as vindouras gerações. Tem a qualidade de ser bem escrito, e bem escrito de tal forma, que mais parece literatura, romance. Esse Freyre era um homem de extrema sensualidade, que tinha, entre outras perversões, o gosto da prosa. Não há livro científico tão bem escrito quanto Casa Grande. Minto: talvez só A Origem dos Sonhos, de Freud. E o seu conteúdo (supondo uma separação dura de forma e conteúdo)?

Em uma época de doutrinas racistas no Brasil e no mundo (lembra do grande Euclides da Cunha a falar de raça frágil em Os Sertões?), em que sempre se disse que nós éramos sub-raça (até hoje há quem insista nisso) por força da miscigenação, Freyre destacou o avanço da mistura de raças, e não só a mistura, Freyre ressaltou o papel do negro como agente de nossa formação cultural e de raça. Ele chega a frases lapidares, na resposta que dá à ideia reinante de que o negro era feio: "feia é a miséria" (em que o negro vive). Lembro - e tudo que digo aqui é de memória, sem consulta - do destaque dado por ele a alguns grupos de negros, muçulmanos, que eram alfabetizados, artesãos sofisticados, escravos de senhores de engenho analfabetos. (Isso ocorreu com mais frequência na Bahia.) Casa-Grande é ainda um avanço - não sei de outro livro semelhante a ele - pela originalidade das fontes de pesquisa: livros de receita das casas-grandes, fotos, cartas íntimas, anúncios de jornais de escravos fugidos e comprados, e, até, acredite, para falar da dieta pobre, mas rica de calorias do português, pelo tipo de fezes comuns ao nordestino da zona açucareira.

Note que o livro é de 1933,e chegou a ser mandado queimar pelos padres da igreja em Pernambuco. Coisa herética, do diabo, com suas revelações vexatórias da vida sexual, promíscua, nos engenhos, em que às vezes as crianças negras papavam o "rabo" dos meninos brancos.

Na época, Gilberto Freyre era um homem de esquerda, não comunista, mas de esquerda, e teve ativa participação nos movimentos pela redemocratização do Brasil, na saída do Estado Novo de Vargas. É da época dos nos 60 a sua postura à direita. Agora, no ponto nevrálgico de Casa-Grande: é um livro que, ao lado dos avanços, reproduz também os limites do seu autor e da sua classe: Gilberto é filho e neto de senhores de engenho, um sujeito culto, genial, portanto "ovelha negra" em seu meio (cultura, talento e civilização sempre aguçam conflitos, em lugar de apaziguá-los), mas filho dos seus limites de tempo e classe.

Isso quer dizer: ele não vai fundo na violência e violentação sofrida pelo escravo. Ele não chega ao extremo de um outro grande brasileiro, Joaquim Nabuco, que tornava lírica a relação entre escravos e senhores da sua infância, não. Mas faz, é verdade, uma defesa e ataque contraditórios, às vezes em um mesmo parágrafo, do engenho e da senzala. Em resumo: esse grande livro, em 1933, foi uma revolução. Mas o tempo e a democracia ultrapassaram o seu diagnóstico da escravidão. No entanto, creio que os movimentos mais radicais de consciência negra muito teriam que aprender em estudar Gilberto Freyre.

Superar é uma forma de assimilar a tradição.

* Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici. Tem inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao ensino em colégios brasileiros.

Um comentário:

  1. Uai, já acabou? Estava gostando tanto. Espero que tenha continuação, pois já que a provocação foi grande, maior ainda terá de ser a resposta.

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