terça-feira, 3 de janeiro de 2012







Serra Morena

* Por Everlyne Furtado

Os de Serra Morena lá não nasceram. Nasceram, eles, em terras outras, mas lá encontraram pouso, como se pouso tivessem as almas daqueles lá, pois todos padecem de um atroz desassossego.
São todos desvalidos de siso e expressam, tal falta, com urros, murros, silêncios ou imobilidades férreas: Pastoreiam, guerreiam, assaltam, deliram e executam tais feitos como querem ou como a loucura própria determina.
Todos carregam cruzes. Chego a pensar, sobre aqueles lá, que as dores no espírito ou no coração - como queiram vocês chamar o que dói a tal ponto de desassossegar-passaram aos músculos, às carnes, à pele e aos ossos, enfim, tudo dói por lá.
Os de Serra Morena: Cardênio, Lucinda, Teodora, Sancho, o Cura, o Barbeiro, o da Triste Figura, os poetas, os bardos, os romancistas, os amantes de hoje e de ontem e mais todos que se identificam com eles daqui ou de lá, não começaram suas sinas na dor; antes passaram todos pela sina do amor ou algo que o valha.
Sem nenhuma exceção aquelas loucuras juntas tinham em comum, além de uma inegável e suprema graça, a desilusão.
É preciso que se diga, contudo, que para se chegar ao desencanto há que se começar pelo encanto. E haja encantamento: Uns tiveram a ventura de amar e serem amados ou pelo menos acreditaram nessa espécie de condão. Outros eram crentes em capas, espadas, cavalarias, romances e salvação.
Todos perderam da realidade a noção, mas já descem a Serra por obra e graça da fé nas notícias de que ao seu pé há uma estalagem, ou venda; ou café ou castelo, onde suas histórias se cruzarão e que, nesse canto, por obra do maior visionário de todos os tempos, a vida seguirá com o fim dos desencontros, o término da loucura e a vitória da boa vontade aliada a um bocadinho de razão.

Texto inspirado em Dom Quixote, de Miguel de Cervantes.

• Poetisa e cronista de Natal/RN

2 comentários:

  1. Imaginei um jardim, na hora do descanso, em uma clínica de repouso. Alguns delírios podem ser atraentes a ponto de se imaginar o mundo do lado de lá como um filme em que se pode visitar e sair ao fim da fita. Outros estão em sofrimento tão profundo, que gostaríamos de poder tirá-los de lá. O fato é que a psiquiatria já consegue dar paz a boa parte dos que sofrem conjugando os verbos citados por você, Evelyne, como urrar, esmurrar, ficar imóvel ou em silêncio, pastorear, guerrear, assaltar e delirar. Um texto para pensar.

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  2. Maravilha, Evelyne. Me fez lembrar de umas férias, lá pelos idos de 84, 85, nas quais mergulhei de cabeça nos três tomos de uma edição portuguesa das aventuras e desventuras do gran cavaleiro de la mancha. Parabéns pelo retrato que tão brilhatemente fez "daqueles lá"... Um beijo e feliz 2012.

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