domingo, 1 de janeiro de 2012







Cacófato não vale?

* Por André Falavigna

Eu sempre tive um enorme apreço por essa baixeza gratuita, descompromissada, inconseqüente e marcadamente paulistana que hoje é motivo de tantas censuras e mesmo de tantas sanções. Em São Paulo, anda cada vez mais difícil encontrar lugares onde ainda floresçam aqueles tipos grossos e simples, tantas vezes colocados aquém da sua própria capacidade, freqüentemente apanhados numa curva qualquer da vida e, então, esquecidos para dentro do bairro de onde um dia surgiram. Muitos desses sujeitos, tivessem sido orientados a tempo, seriam advogados, médicos, engenheiros, publicitários ou qualquer outra coisa (como jornalistas esportivos, por exemplo); seriam tudo isso e num padrão melhor do que esse com o qual habitualmente lidamos por aí. Não tendo sido orientados, ou mesmo desorientando-se por livre e espontânea vontade (isso é muito mais comum e melhor do que se pensa), viram-se da mesma maneira e, bem ou mal, tocam a vida numa dignidade que só é surpreendente para a condescendência boçal de pessoas muito sensíveis. Pessoas do tipo das que freqüentam aulas de ciências sociais. Em outras ocasiões, tornam-se engenheiros, médicos e advogados, ou mesmo qualquer outra coisa, e sem qualquer orientação. Em todas as hipóteses realizam, enfim, um ou dois objetivos na vida que os faz, por assim dizer, realizados. E isso, a despeito de todo esse preconceito hoje em voga contra a vida burguesa, é infinitamente mais valioso do que “um outro mundo possível”. É mais valioso, inclusive, porque é possível mesmo, e porque faz referência à vida de homens e não à de anjinhos desastrados.

Às vezes parece que não, mas o habitat do paulistano de boteco e padaria está diminuindo drasticamente, ano após ano. Isso levará nosso homem à extinção. E, não, eu não me refiro só ao avanço dos shoppings e da ditadura do padrão coisa fofa para nossos bares, fruto de uma certa fartura material combinada a nenhum senso estético. Refiro-me também ao fato de que uma cidade grande com a nossa não pode suportar, com uma economia pequena como a dela, tanta gente como somos. Associe-se esse fato (porque se trata de um fato) ao longo bombardeamento sistemático de todas as bases nas quais se construiu toda uma moralidade, e você terá uma ou duas pessoas que, dentre centenas de milhares de famílias de pobres e sem perspectiva, arrumarão uma desculpa para champinhinizar alguma moça que tenha achado divertida a idéia de dar um trepadinha na floresta. Tanto faz se a moça é pobre ou rica: o importante é que seja “bonita e gostosa”. Associe-se também, a título de informação complementar e só, essa mesma degradação moral à qualquer tipo de fartura material, e você conseguirá obter nove ou dez sujeitos, no seio de algumas dezenas de milhares de famílias ricas e cheias de futuro para dar, dispostos a tocar fogo em mendigos bêbados, ou mesmo num índio, bêbado ou não, que se pareça com um mendigo bêbado. O homem de bem, aquele sujeito que ainda por cima é achincalhado em todas as salas de ensino, do colegial ao MBA, ele está cercado. Sejam suas posses maiores ou menores, como ele é de “classe média”, não pode prestar. Ou merece ser sangrado em praça pública porque tem dois carros, ou deve ser tomado como um estúpido que não se revolta mesmo tendo que apanhar ônibus lotado todo dia. E, daqui a pouco, ele não tem nem mais onde beber em paz.

E isso é triste, mas não é a pior parte. Que não topássemos, nunca mais, com nenhum desses cafajestes moralistas, e que isso se desse por causas naturais (se um cometa desabasse sobre o Belém, por exemplo), isso seria compreensível. Ainda poderíamos nos embriagar, sob a Lua, rememorando os hercúleos êxitos etílicos de uma ou outra figura mais ditosa. Mas não é isso que está acontecendo. Estão criminalizando é a idéia do macho de boteco ignorante e porco. Porque, se um homem não pode mais fazer piadas com negros, viados, aleijados e afins, se um homem não pode mais tirar sarro nem de macumba, nem do São Paulo Futebol Clube e nem do PT (ou do PSol), se ele não pode mais bater na própria mulher de vez em quando, ele é já não é mais um homem: ele é apenas “um outro homem possível”.

Vou ilustrar a coisa contando um episódio de Carlos Roberto Donato, o Donato. Ele é do Cambuci, um patrimônio do Cambuci, mas quem já teve a oportunidade de sair com ele por aí sabe que se trata de um cidadão da cidade. Se quisesse, seria vereador com alguma facilidade.

Um aparte para a voz de Donato: é tão grossa quanto é possível uma voz ser grossa. É metálica, e ele sempre fala muito alto.

E há mais sobre ele. É um homem com o exato senso poético para adivinhar se uma mulher quer apanhar, mesmo quando ela não pede. Bebe bem, mas só cerveja. Surpreendentemente, é são-paulino. Deve ser um dos últimos são-paulinos que ainda fuma e acha certo, sem pedir desculpas. É o único artista plástico são-paulino, em toda a orbe, que não dá o cu. Só pode ser a exceção que confirma a regra.

Ele está quase sempre com dois óculos, um escuro encaixado por sobre um outro claro, este de grau. Usa uma corrente longa e gosta de pulseiras e anéis. Veste-se com heterodoxia espantosa para o nosso tipo médio. Calças vermelhas, camisas estampadas abertas, jaquetas oficiais de times americanos de esportes americanos. Bermudas, chinelos, chuteiras e jeans. Imprevisível. O homem é quase fashion.

Entende de cachorros e vive de passear com os cachorros dos outros, atualmente e por enquanto.

Um dia, não faz muito tempo, estávamos todos no Empório A&M, no Cambuci. Uma pequena mercearia onde se encontra de tudo, e onde se pode beber como um porco. Tem uma bela vista (vê-se até o sol morrer dali) e fica a poucos metros de duas bocas de farinha. No Cambuci, isso não quer dizer que o local seja perigoso. Também não quer dizer que seja seguro. Quer dizer que não faz diferença, inclusive porque a farinha por lá é péssima. Servem uns sanduíches bons, azeitonas em conserva e tremoços, e a cerveja vem muito, muito gelada sempre. Sempre mesmo. Isso faz diferença.

Eu ia dizendo: estávamos lá, bebendo, bem no início de um fim de tarde que não iria longe. Não era para ir. Então, surgiram os BOs. BOs é como algumas das minhas pessoas preferidas se referem a meninas impúberes que elas gostariam de comer. Nunca vão comer nenhuma, mas a idéia é ótima. Todos ficaram olhando os tais BOs, com olhos impublicáveis. As meninas vinham em nossa direção, e já estavam na calçada em frente à nossa. Nesse ponto, prudentemente, tomaram o rumo da rua de cima e foram sumindo de vista. Daí cometeram um erro: deram as costas para o público. Um de meus irmãos disse assim de uma das crianças (não eram mais do que crianças): _ olha essa daí: daqui a uns dois, três anos, já dá pra comer.

Nem pedofilia era direito, a não ser que se admitisse a hipótese da pedofilia retroativa. Porque dali dois, três anos, a coisa já caia em presunção relativa de violência. Nem estupro dava para garantir. Em suma: cadê a graça? Foi então que Donato deu um rumo diferente ao assunto: _ Anos? Daqui a duas, três horas, já dava pra mandar ver nela faz tempo!

Não vou comentar o aspecto paradoxal da proposição, quanto ao tempo. Achamos engraçado. Rimos. Mas uma pessoa sem os dois ou três primeiros copos poderia achar até sem graça. Ela resistiria durante certo tempo. Provavelmente só até, poucos minutos depois, quando a conversa já havia tomado outro rumo, os BOs reaparecerem e, desta vez, entrarem na mercearia. A menina que se prestava à imolação imaginária daqueles homens finos estava com vontade de sorvete, e as amigas a acompanharam. O espaço é exíguo, quase todos ficamos de pé quase o tempo todo. É pouco mais que um corredor. Todos abriram espaço, alguns tiveram que sair para as escadinhas da ladeira, copinho americano na mão.

A mocinha realmente prometia. Esguia, morena, cabelões cacheados, já prenunciava curvas limpas. O rosto eu nem vi, que não sou homem de olhar rosto. Não estava, ainda, própria para o consumo. Para piadas e elucubrações lúbricas, era o prato perfeito.

Eis a coisa: a menina, sem pressa, escolhe o sorvete. Abre o freezer, daqueles de “porta de correr”, transparente. Muita atenção a todos os movimentos. Já não eram mais só os dois, três primeiros copos que haviam descido. Muito destilado, vagabundo ou bom, já havia descido. Tensão e suor no ar. Do alto de nos seus no máximo doze anos, ela se debruça, fica nas pontas do pés e dobra o dorso para baixo, para alcançar um picolé mais fugidio. Obviamente, suas nádegas, nessa hora, apontaram para cima, enfiadas numa dessas calças de colégio público que, depois de muito usadas, mais parecem calças de pijama. Muita gente pensou muita coisa pela qual pagará algum tempo no purgatório. Mas apenas Donato disse, com sua voz estrepitosa e grave:

_ Ah, e essa hora que não passa!

E é com esses momentos que querem acabar. É com esse tipo de homem, de pequeno herói de bairro, que estão tentando exterminar. Estão, mais do que destruindo suas florestas, exterminando-o numa caça predatória, covarde e imoral. As baleias que se fodam. Precisamos salvar o paulistano comum, as piadas baixas, o ambiente saudável dos bairros reacionários. Precisamos salvar a Mooca, o Ipiranga, o Cambuci. Eu sou do Cambuci. Sou, portanto, cambucetense. Pilão de socar alho? No Cambuci tinha. Futebol de campo tinha. Lá tinha de tudo. Não se assustem, não vou terminar a rima. Não tenho tempo. Acabou o expediente e eu vou ao empório. Comprar pão antes de ir pra casa. Ver o sol se pôr. Bêbado.

(*) André Falavigna é escritor, tendo publicado dezenas de contos e crônicas (sobretudo futebolísticas) na Web. Possui um blog pessoal no qual lança, periodicamente, capítulos de um romance. Colabora com diversas publicações eletrônicas.

Nenhum comentário:

Postar um comentário