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São Pedro de Atacama - A história
* Por Urda Alice Klueger
(Excerto do livro "Viagem ao Umbigo do Mundo, publicado em 2006)
Como contar sobre São Pedro de Atacama? Acho que, a melhor forma, como sempre, é começando pela História, e ela começa há mais de 12.000 anos antes do presente. Vou tomar a liberdade de traduzir parte de um texto de uma revista de Arqueologia que trouxe do Museu Arqueológico R. P. Gustavo Le Paige, daquela cidade: “’(...) Com a chegada de Le Paige[1] à zona é quando realmente se iniciam os estudos permanentes da cultura pré-Histórica do Atacama (...) cuja antiguidade remontaria há mais de 12.000 anos. Postula (ele) que os atacameños foram os primitivos habitantes de toda a região do sul do Peru, sudoeste da Bolívia, noroeste da Argentina e centro do Chile, transmitindo sua cultura às populações que chegaram depois, para retirar-se logo à zona onde permaneceram e onde se encontram ainda hoje. Esse reduto final (que hoje chamamos de São Pedro de Atacama) havia sido muito mais restrito que o suposto por investigadores anteriores; isto havia obrigado aos atacameños a se converter em valentes guerreiros para defender seu território, explicando-se assim a presença de fortalezas. Le Paige defende que durante essa longa pré-História, os atacameños passaram por todos os processos evolutivos de uma cultura, incluindo a domesticação de plantas e animais, com aprendizados como os da cerâmica e seus elementos associados, e que seriam anteriores a Tiauanaco, cultura que até então se tinha como geradora de civilização avançada.[2]
O Congresso Internacional de Arqueologia de São Pedro de Atacama, em 1963 foi o segundo que se realizava no Chile, e ele haver-se efetuado em São Pedro de Atacama é prova de importância que essa zona havia adquirido nos campos dessa disciplina. Os arqueólogos nacionais, junto a alguns estrangeiros, se reuniram para discutir sobre o tema, e a presença destes últimos refletia o já crescente interesse internacional pela Arqueologia de São Pedro de Atacama.”
Como este é um livro que deve falar sobre motociclismo, e não sobre arqueologia, vou tentar transformar em poucas linhas a História daquele lugar privilegiado desde 12.000 anos atrás, quando ali chegaram os primeiros caçadores-coletores, decerto provenientes do estreito de Behring, e em como ali se fixaram, e mais tarde dominaram toda a região, ao mesmo tempo em que domesticavam plantas e animais e construíam uma civilização própria, tornando-se mais uma das civilizações andinas, e não uma mera continuação de alguma outra civilização, como por tanto tempo se quis crer. Sofisticadíssima, a civilização atacameña produziu os mais diferentes tipos de objetos, enfeites e roupas, principalmente, trabalhando inclusive os metais, como o ouro e o cobre, e seus vestígios ficaram muito bem conservados naquele clima seco do deserto, inclusive seus mortos, enterrados embrulhados dentro de suas próprias roupas, como se fossem grandes trouxas amarradas por fortes cordas, e entre todas as outras coisas que produziram, as múmias são uma das grandes curiosidades da cultura material daquela gente que ali viveu no passado.
Eu já vi múmias de diversos outros tipos, mas nunca as havia visto como as que existem no museu de São Pedro de Atacama. Apenas o que era úmido, molhado, evaporou-se dos corpos dos antigos atacameños, como sangue, linfa, etc. O que mais que a gente tem no corpo apenas secou: a peles, as carnes, os músculos, etc., o que resultou em múmias que mais um pouco pareceriam vivas, com seus próprios cabelos, seus próprios dentes ainda inseridos em mandíbulas ressecadas, os rostos com suas próprias peles, apenas um tanto quanto repuxadas e partidas pela secura – mais um pouco e as múmias se levantariam das suas vitrines de vidro e poderiam voltar à vida. São interessantíssimas, chamam a maior atenção, como chamam a maior atenção também as vastas coleções de objetos e tecidos que ali estão expostos, tecidos e objetos atacameños e de outros povos e civilizações que floresceram no passado no mundo andino, e com quem aquela gente mantinha contatos comerciais e decerto outros a nível internacional. Foi naquele Museu de São Pedro de Atacama que pela primeira vez vi os finos tecidos que os Incas produziam para a sua elite, tão finos e delicados como uma boa seda, se bem que, depois de tantos séculos, os que lá estão guardados tenham ficado com a cor da velhice, uma cor escura, quase marrom, coisas do tempo. Fiquei a imaginar que material usavam os Incas para produzir tais tecidos tão finos. Alguém me disse que penteavam cuidadosamente suas vicunhas e alpacas para conseguirem os melhores fios, para usarem na tecelagem da roupa da nobreza. Não sei. Precisaria confirmar tais dados, porque como se conseguiriam aqueles tecidos com a textura da seda a partir de lã de animais?
No devido tempo, a gente atacameña sofreu as influências de Tiauanaco, e muito mais tarde, já no século XV, acabou recebendo, também, o invasor Inca, que chegou lá 70 anos antes que os espanhóis. Há muitíssimo o que aprender lá, e sugiro a você que se informe mais. Na prática, na prática, hoje temos um povo atacameño cioso das suas raízes e da sua História, orgulhoso de um passado único e ímpar, um passado que influenciou regiões dos 4 países que quase se encontram por ali por perto: Chile, Argentina, Peru e Bolívia.
E também na prática, na prática, São Pedro de Atacama é hoje um centro turístico que reúne visitantes de todos os lados, principalmente europeus, que vêm para aprender o que já se perdeu em outros lugares. Também na prática São Pedro é uma cidade de adobe, com uma catedral quinhentista de adobe, charmosos hotéis, restaurantes, lojinhas, cafés cibernéticos e casas noturnas em profusão, tudo de adobe, alguns prédios caiados em cores variadas, outros simplesmente da cor do barro de que são feitos. É uma fascinante cidadezinha onde turistas internacionais tomam cerveja em hotéis coloniais ou comem comida natural em casas especializadas, e espiam curiosamente para um passado que está escondido lá no Museu e no final do túnel do tempo.
[1] La Paige: arqueólogo francês (Nota da autora)
[2] Ah! Meus amigos, procurem aprender mais sobre Tiauanaco, essa maravilha boliviana praticamente desconhecida no Brasil, cidade com 12.000 anos de idade, e que rivaliza com as mais impressionantes cidades mesopotâmicas ou egípcias. Se não tiverem outra fonte, posso aconselhar um livro de minha autoria, chamado “Entre condores e lhamas”, que vai abordar o assunto por ter viajado por lá em 1993. (Nota da autora)
• Escritora, historiadora e doutoranda em Geografia pela UFPR.
* Por Urda Alice Klueger
(Excerto do livro "Viagem ao Umbigo do Mundo, publicado em 2006)
Como contar sobre São Pedro de Atacama? Acho que, a melhor forma, como sempre, é começando pela História, e ela começa há mais de 12.000 anos antes do presente. Vou tomar a liberdade de traduzir parte de um texto de uma revista de Arqueologia que trouxe do Museu Arqueológico R. P. Gustavo Le Paige, daquela cidade: “’(...) Com a chegada de Le Paige[1] à zona é quando realmente se iniciam os estudos permanentes da cultura pré-Histórica do Atacama (...) cuja antiguidade remontaria há mais de 12.000 anos. Postula (ele) que os atacameños foram os primitivos habitantes de toda a região do sul do Peru, sudoeste da Bolívia, noroeste da Argentina e centro do Chile, transmitindo sua cultura às populações que chegaram depois, para retirar-se logo à zona onde permaneceram e onde se encontram ainda hoje. Esse reduto final (que hoje chamamos de São Pedro de Atacama) havia sido muito mais restrito que o suposto por investigadores anteriores; isto havia obrigado aos atacameños a se converter em valentes guerreiros para defender seu território, explicando-se assim a presença de fortalezas. Le Paige defende que durante essa longa pré-História, os atacameños passaram por todos os processos evolutivos de uma cultura, incluindo a domesticação de plantas e animais, com aprendizados como os da cerâmica e seus elementos associados, e que seriam anteriores a Tiauanaco, cultura que até então se tinha como geradora de civilização avançada.[2]
O Congresso Internacional de Arqueologia de São Pedro de Atacama, em 1963 foi o segundo que se realizava no Chile, e ele haver-se efetuado em São Pedro de Atacama é prova de importância que essa zona havia adquirido nos campos dessa disciplina. Os arqueólogos nacionais, junto a alguns estrangeiros, se reuniram para discutir sobre o tema, e a presença destes últimos refletia o já crescente interesse internacional pela Arqueologia de São Pedro de Atacama.”
Como este é um livro que deve falar sobre motociclismo, e não sobre arqueologia, vou tentar transformar em poucas linhas a História daquele lugar privilegiado desde 12.000 anos atrás, quando ali chegaram os primeiros caçadores-coletores, decerto provenientes do estreito de Behring, e em como ali se fixaram, e mais tarde dominaram toda a região, ao mesmo tempo em que domesticavam plantas e animais e construíam uma civilização própria, tornando-se mais uma das civilizações andinas, e não uma mera continuação de alguma outra civilização, como por tanto tempo se quis crer. Sofisticadíssima, a civilização atacameña produziu os mais diferentes tipos de objetos, enfeites e roupas, principalmente, trabalhando inclusive os metais, como o ouro e o cobre, e seus vestígios ficaram muito bem conservados naquele clima seco do deserto, inclusive seus mortos, enterrados embrulhados dentro de suas próprias roupas, como se fossem grandes trouxas amarradas por fortes cordas, e entre todas as outras coisas que produziram, as múmias são uma das grandes curiosidades da cultura material daquela gente que ali viveu no passado.
Eu já vi múmias de diversos outros tipos, mas nunca as havia visto como as que existem no museu de São Pedro de Atacama. Apenas o que era úmido, molhado, evaporou-se dos corpos dos antigos atacameños, como sangue, linfa, etc. O que mais que a gente tem no corpo apenas secou: a peles, as carnes, os músculos, etc., o que resultou em múmias que mais um pouco pareceriam vivas, com seus próprios cabelos, seus próprios dentes ainda inseridos em mandíbulas ressecadas, os rostos com suas próprias peles, apenas um tanto quanto repuxadas e partidas pela secura – mais um pouco e as múmias se levantariam das suas vitrines de vidro e poderiam voltar à vida. São interessantíssimas, chamam a maior atenção, como chamam a maior atenção também as vastas coleções de objetos e tecidos que ali estão expostos, tecidos e objetos atacameños e de outros povos e civilizações que floresceram no passado no mundo andino, e com quem aquela gente mantinha contatos comerciais e decerto outros a nível internacional. Foi naquele Museu de São Pedro de Atacama que pela primeira vez vi os finos tecidos que os Incas produziam para a sua elite, tão finos e delicados como uma boa seda, se bem que, depois de tantos séculos, os que lá estão guardados tenham ficado com a cor da velhice, uma cor escura, quase marrom, coisas do tempo. Fiquei a imaginar que material usavam os Incas para produzir tais tecidos tão finos. Alguém me disse que penteavam cuidadosamente suas vicunhas e alpacas para conseguirem os melhores fios, para usarem na tecelagem da roupa da nobreza. Não sei. Precisaria confirmar tais dados, porque como se conseguiriam aqueles tecidos com a textura da seda a partir de lã de animais?
No devido tempo, a gente atacameña sofreu as influências de Tiauanaco, e muito mais tarde, já no século XV, acabou recebendo, também, o invasor Inca, que chegou lá 70 anos antes que os espanhóis. Há muitíssimo o que aprender lá, e sugiro a você que se informe mais. Na prática, na prática, hoje temos um povo atacameño cioso das suas raízes e da sua História, orgulhoso de um passado único e ímpar, um passado que influenciou regiões dos 4 países que quase se encontram por ali por perto: Chile, Argentina, Peru e Bolívia.
E também na prática, na prática, São Pedro de Atacama é hoje um centro turístico que reúne visitantes de todos os lados, principalmente europeus, que vêm para aprender o que já se perdeu em outros lugares. Também na prática São Pedro é uma cidade de adobe, com uma catedral quinhentista de adobe, charmosos hotéis, restaurantes, lojinhas, cafés cibernéticos e casas noturnas em profusão, tudo de adobe, alguns prédios caiados em cores variadas, outros simplesmente da cor do barro de que são feitos. É uma fascinante cidadezinha onde turistas internacionais tomam cerveja em hotéis coloniais ou comem comida natural em casas especializadas, e espiam curiosamente para um passado que está escondido lá no Museu e no final do túnel do tempo.
[1] La Paige: arqueólogo francês (Nota da autora)
[2] Ah! Meus amigos, procurem aprender mais sobre Tiauanaco, essa maravilha boliviana praticamente desconhecida no Brasil, cidade com 12.000 anos de idade, e que rivaliza com as mais impressionantes cidades mesopotâmicas ou egípcias. Se não tiverem outra fonte, posso aconselhar um livro de minha autoria, chamado “Entre condores e lhamas”, que vai abordar o assunto por ter viajado por lá em 1993. (Nota da autora)
• Escritora, historiadora e doutoranda em Geografia pela UFPR.
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