sábado, 1 de outubro de 2011







O Rosa, ainda uma vez

* Por Anna Lee


Não. Não se trata de uma obsessão por Guimarães Rosa o fato de mais uma vez - e em tão pouco tempo, coisa de 15 dias -, estar fazendo dele objeto de meu texto. Com isso, também não estou querendo dizer que sua obra não motiva a leitura. Motiva. E irresistivelmente. Sempre me levou a uma exaltação capaz de me transportar para fora de mim e do mundo sensível, uma espécie de contato com algo transcendente.

Um transe.

Transe que, por hora, prefiro deixar na conta de espantamento, tal qual manifestei no texto anterior. Um espantamento que teve origem não na leitura de um de seus escritos, mas no fato de Guimarães Rosa ter feito duras críticas a Machado de Assis, em suas anotações da época em que viveu na Alemanha, de 1938 a 1942. Num texto intitulado “Notas, de memória, após apressada leitura do Brás Cubas de Machado de Assis”, entre outros comentários, ele diz: “Não pretendo ler mais Machado de Assis. (...) Acho-o antipático de estilo, cheio de atitudes para embasbacar o indígena; lança mão de artifícios baratos, querendo forçar a nota de originalidade; anda sempre no mesmo trote pernóstico, o que torna tediosa a sua leitura (...)”.

Não satisfeita com meu próprio espantamento, corri para mostrar a anotação para o Cony – machadiano de carteirinha. Como previ, ele não só compartilhou de meu espantamento como também escreveu na Folha de S. Paulo, onde transcreveu parte dos comentários de Guimarães: “Temos a opinião do único romancista brasileiro que se alçou a um patamar próximo ao de Machado, em pólo contrário, mas com o mesmo prestígio acadêmico, crítico e de público. Pobre dos demais romancistas que navegaram ou navegam ainda nas mesmas águas. Se um gigante como Rosa ataca de forma tão radical outro gigante, que será dos demais que se encontram na planície, divididos nas duas vertentes básicas de nossa literatura de ficção”.

Ando às voltas com o arquivo de Guimarães Rosa e foi daí que mais uma vez me espantei. Ele, letrado e sabedor de diversos idiomas - também homem de muitas viagens, inclusive pelo Brasil (Mato Grosso, Pantanal e o sertão das Gerais) –, costumava dizer que, quando se via diante de questões existenciais, preferia consultar sertanejos e pantaneiros do que qualquer grande filósofo, pensador ou escritor.

De certa forma, consigo entendê-lo. Em 1995, época em que trabalhava na Manchete, tive oportunidade de fazer o Pantanal. E descobri que tão fascinante como a paisagem é a gente de lá. Os pantaneiros, donos de linguajar próprio e muito hospitaleiros, estão sempre dispostos a dedicar um dedinho de prosa. O café “quentando” no fogão de lenha nunca falta e é servido com “cachorrada” e “furrundum”, que aqui no sudeste seriam doce de leite feito com leite coalhado e doce de mamão com rapadura.
Só que Guimarães Rosa não ficou por aí. Na elevada conta que tinha os sertanejos e os pantaneiros, foi além. Disse que, para ele, Goethe era um sertanejo, um pantaneiro. Um exagero. Mas, ainda assim e mais uma vez, é possível entendê-lo. A seu modo, falava da grandeza na qual tinha o autor de Werther e Fausto.

Por outro lado, é inevitável lembrar de Napoleão Bonaparte. Em 1808, à época da publicação de Fausto I, o imperador francês, que havia lido oito vezes Werther, manifestou vontade de conhecer Goethe e mandou chamá-lo. Quando ele entrou na sala, Napoleão levantou-se e exclamou:
Voilá un homme!

Vale aqui dizer:
Guimarães Rosa! Voilá um sertanejo! Voilá um pantaneiro! Ainda que tenha sido um duro crítico de Machado de Assis.

*Jornalista, mestranda em Literatura Brasileira, autora, com Carlos Heitor Cony, de "O Beijo da Morte"/Objetiva, ganhador do Prêmio Jabuti/2004, entre outros livros. Colunista da Flash, trabalhou na Folha de S. Paulo e nas revistas Quem/Ed.Globo e Manchete.

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