domingo, 16 de outubro de 2011







Na escuridão se moldaram os olhos

* Por Eduardo Murta


Tchelo vê sonoridades quase angelicais na voz que o aconselha. As palavras chegando amanteigadas. Pedindo que não desistisse, porque haveriam de trazer Beatriz de volta. Ele menino a tiracolo do do pai, aos pés daquela gameleira que, contavam, sabia reconhecer os desejos feitos na conta do coração. O dele era. Como era. Reencontrar Bia. Lá se ia uma semana, e não havia um só segundo em que descresse da certeza de que ela retornaria.
Já ouvira de reencontros nos quais não se empenharia uma só moeda. O bezerro desgarrado de Zé Amâncio, penando nas matas em que onças saberiam descrever cada folhagem. O papagaio de Dona Bilu, dado por desencantado naquelas copas de mangueiras em que os bandos de jandaias convidavam a partidas sem pouso. Eram exatamente ao feitio das migrações sem norte que os avós descreviam nas terras mais secas do Jequitinhonha. Uma gente marchando a esmo.

Acolhia, então, como fora uma canção de ninar as orações do fim de tarde. Os irmãos reunidos em escadinha, intercalando as falas do amém ao sinal dos mais velhos. Agradecendo pelo teto em folhas de palmeira e às paredes de adobe como um privilégio. Mas cá estão, ele e o pai, agora às sombras dobradas da gameleira. Tchelo sem saber por onde começar, e Seu Juvêncio, inspiração raleando, prendendo e desprendendo a fivela do bolsão de couro, a que lhe vingassem idéias.

Sugeriu, convicção minguada, que o menino pensasse com o coração no instante de pedir. Ficou mirando o pai, sem coragem para perguntar o significado daquilo. Ruminou longo. Intuiu. E vislumbrou que não poderia falar de coisa outra, que não algo belo, bom. Feliz. Deixou as pálpebras descerem mansas, pensou naquela chuva esperada com festa, no reencontro dos parentes seduzidos pela cidade grande, na canjica com amendoim de Tia Zilda.

E sentiu a palpitação lhe soar num outro cadenciado. Daí, desenhou a face de Beatriz: o nariz num rosa tímido, os olhinhos amendoados, o jeito em súplica de pedir colo, num choramingo baixo. O rabinho abanando em saudação de alegria. Reconheceria o latido, precisasse, numa convenção de cães. Aquele sentimento remoendo, descobriu o que era pensar com o coração. Estava pronto para a volta, mas a mão espalmada de Juvêncio lhe barrou.

Faltava algo. O que depositaria na cesta de agradecimentos? Tchelo foi elencando as opções de escolha: renunciar à caça de rolinhas, fazer jejum dos banhos de riacho, se privar da zombaria de Tião Doido, tocado às pedras pela meninada. Volteou, e fez nenhuma coisa, nem outra. Em lugar de renúncia, elegeria uma escolha. A de descrever minúcias aos cegos de feiras. Seu Juvêncio estranhou, mas, vontade do menino, aquiesceu.
Tchelo ainda se perguntava era como o faria. Começou enumerando paisagens, juntou a ela ordens de grandeza, vales em que a mirada se perdia. Chegou, por fim, ao barro. Aos moldes. Às figuras e cenários esculpidos. O detalhe do portal do mercado. Os contornos das torres da igreja. Os chifres curvos do boi bravo. Os vãos que cego algum tocaria. Até que Pedro Moranga, o da sanfona, lhe inquirisse: se lhe era possível tatear aqueles espoucos das festas de São João tomando os céus.

Gelou à interrogação. Mas prometeu resposta. Semana seguinte, aportou com a bacia grande. Chamou Pedro. Pediu que se entregasse aos perfumes. Erguesse os braços. E lançou ao alto a coleção de pétalas amarelas, recomendando que espalmasse as mãos. Colhendo o que pudesse, que esfregasse ao rosto, ao corpo. Aqueles, traduziu, eram os espoucos de São João. Rumava pra casa, ouviu o som seco da bengalinha ao fundo, e esperou. Era cego novo em busca do menino que, contavam, transformava barro numa forma nova de se ver a vida.

Foi se aproximando com o cão-guia, corda pobre, pêlo encardido. Tchelo conferiu a cena. A silhueta da gameleira lhe chegando como uma brisa de contentamento. Viu o narizinho rosado, o rabinho em saudação de alegria. E os olhos amendoados, aqueles olhos que ele já não sabia mais a quem pertenciam.

• Jornalista, 42 anos, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado no dia 8 de maio passado, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. É secretário de Redação do jornal Hoje em Dia, diário de Belo Horizonte. Já teve passagens também pelos jornais Diário de Minas e Estado de Minas, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. Foi um dos colunistas do Hoje em Dia (www.hojeemdia.com.br), onde publicava às quartas-feiras.

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