quarta-feira, 12 de outubro de 2011





Goda Porreta



Compadre Alcides

* Por Mara Narciso



Vi no blog “A Província”, de Reginauro Silva, que conta com mais de um milhão e meio de acessos, um texto de João Avelino, homenageando Goda Porreta. Observei que Goda foi alguém amado e admirado pela sua veia cômica, e que eu acabei conhecendo pelos vários escritos que a sua morte suscitou. Falando sobre o futebol do passado, nessa mesma homenagem, Avelino faz desfilar personagens do futebol de Montes Claros, e menciona meu pai, Alcides Alves da Cruz da seguinte forma: “e vi as jogadas geniais de Manoelito e os cem pulos do Compadre Alcides.”
Meu pai foi o rei dos botecos. Gostava de uma cerveja Antártica “tinindo de gelada”, e nos bons tempos pagava apenas parte daquelas que bebia, pois era campeão da “purrinha”. Mas antes dos 32 anos, ocasião em que largou o futebol e o amado Cassimiro de Abreu, onde jogava com Buião, Amarildo, Jaiminho e outros que não me recordo, era abstêmio, e não fumava.
Na mesa do bar aonde ia todos os dias após o expediente, era falante, contava piadas, desfiava charadas, levava notícias recentes e frases curiosas, falava das últimas análises, pois lia o Jornal Estado de Minas todos os dias, duas vezes as partes mais importantes, e a revista Veja todas as semanas.
Compadre Alcides, como era conhecido pelos amigos (alguns não tão amigos), tinha obsessão por escrever e falar corretamente, consultava o dicionário, e escrevia boas cartas comerciais. Amigável fora de casa, parecia ter outra personalidade no lar, pois com os filhos e a minha mãe, era autoritário, fechado, caladão, e nos oprimia pelo silêncio e indiferença. Tudo nos era proibido, entre coisas absurdas e loucuras semelhantes às ordens do Talibã. Em criança não, mas em moça, era-me o terror.
Feito o aparte, quero dizer que meu pai foi um homem trabalhador, severo e honestíssimo com coisas de dinheiro, muito rigoroso em questões de honra e ética. Ainda assim, sei que frequentava a zona boêmia, coisa que levou ao fim do casamento dele com minha mãe. Meu pai sumiu de nós por nove anos e após esse prazo, chegou bem mudado. Foi uma reaproximação difícil, mas boa. Nas minhas visitas a casa dele, conversávamos sobre todos os assuntos, especialmente política, que gosto e ele gostava muito, e como tínhamos posições opostas, era preciso cautela.
Desde menina eu via as fotos do futebol e ouvia as suas histórias. Pessoas contavam, - pois eu era muito pequena quando ele largou os gramados-, que meu pai jogava futebol muito bem, e fazia gols incríveis de cabeça, mesmo sendo de baixa estatura (1m68cm). Tinha um álbum de fotos (sumiram todas), algumas delas marcando gol. Então, quando ele já estava doente, aconteceram várias listas de homenagens a ex-atletas dos campos. Li enormes relações e em todas elas o meu pai foi esquecido. Difícil entender que amigos deixassem o nome dele de fora, a menos que fosse de propósito. Depois, quando achei dois cheques de uma dessas pessoas (dinheiro emprestado e jamais pago, no valor de quase dez mil reais há oito anos), compreendi o motivo do “esquecimento”. E por isso mesmo me revoltei em ver que era intencional. Falo como filha que sabe o quanto ele foi injustiçado nessa ausência, pois jogava bem de fato. É preciso que se diga o quanto ele foi bom artilheiro, e, se ficou de fora, foi por perseguição, pois até os seus oponentes, em reconhecimento, nomearam com seu nome um vestiário do Atheneu.
Compadre Alcides tinha defeitos, e sofreu para pagar os seus pecados e mais alguns, ocasião da doença (cinco anos tetraplégico devido a cinco “derrames”) que muito nos aproximou. O nosso afeto foi gestado no meio de grande dor, a ponto de ter restado uma saudade sem remorsos. Agora é preciso que se corrija o lapso. Quero que todos saibam que meu pai foi um excelente goleador. E por este motivo, ler no texto de João Avelino, mesmo que de passagem, essa citação, lavou-me a alma, e resgatou-lhe o nome e os brios. Venho a público agradecer-lhe essa doce homenagem, repetindo “os cem pulos do Compadre Alcides”. Obrigada João!

*Médica endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia Feminina de Letras de Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”-

7 comentários:

  1. Mara, aqui é a mesma coisa, a gente é feito
    sabonete Vale Quanto Pesa (Foi preferência
    nacional nas décadas de 50/60). Referente
    a "purrinha", veio-me à mente quando fui também campeão. Veio do interior dois campeões do chamado jogo de "purrinha", aqui é com "o", mesmo! Ambos eram telegrafistas e começaram a jogar assobiando em código Morse, eles não sabiam que eu era radiotelegrafista, então consagrei-me campeão da "porrinha" (rs).
    O João Avelino merece aplausos, pois ele resgatou o nome de seu pai "os cem pulos
    do Compadre Alcides". Valeu!

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  2. Obrigada Calvino, pelo comentário. Sei que deveria escrever com "o", porém como aqui se fala assim, achei melhor escrever entre aspas e com "u".

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  3. Que belo resgate heim Mara!
    Fico feliz por você.
    Abraços

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  4. Fez-me lembrar de quando minha família enfrentava sol e chuva em meio ao cerrado onde havia um campo de futebol no interior de Goiás...
    Doces lembranças!
    Abraços Mara!

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  5. Seu pai parece ter sido uma figura singular, capaz de inspirar muitos e muitos textos. Foi bom conhecê-lo um pouco, Mara. Meu abraço e parabéns pela lavra filial.

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  6. Núbia, fiquei feliz com a possibilidade de resgate e a crônica em homenagem a um acabou servindo de mote para o outro, meu pai. Obrigada pela passagem e comentário estimulante.
    Marleuza, cada um de nós tem na família alguém bom de bola. Agradeço a presença.
    Marcelo, escrevi algumas crônicas contando amargamente como foi terrível conseguir um fim de vida digno para meu pai.Agora, findo o calvário, posso falar de coisas boas. Foram poucas, mas existiram. Muito obrigada!

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  7. Mara,
    boas lembranças. Bela homenagem.
    Mais um GOL literário.

    beijos

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