

Roberto Carlos e a Ditadura
* Por Urariano Mota
As datas, os aniversários, têm um poder evocativo muito forte. Esta semana me veio de súbito uma pergunta: que música seria mais representativa do golpe militar de 64? Quais canções, que músico seria mais representativo daqueles anos inaugurados em um primeiro de abril?
Num estalo me veio que Roberto Carlos deve ter sido o compositor mais representativo da ditadura. Não sei se num curto espaço conseguirei ser claro. Mas tento. Os mais velhos sabem que a lembrança daqueles anos muito tem a ver com os rádios, em todos os lugares, tocando
“De que vale o céu azul e o sol sempre a brilhar
se você não vem e eu estou a lhe esperar
só tenho você no meu pensamento
e a sua ausência é todo meu tormento
quero que você me aqueça nesse inverno
e que tudo mais vá pro inferno”
Quando Roberto Carlos explodiu os rádios do Brasil, ele cresceu em um programa que arrebentou em 65. O programa Jovem Guarda se opunha ao O Fino da Bossa, com Elis. Enquanto O Fino da Bossa fazia uma ponte entre os compositores da velha guarda do samba e os compositores de esquerda, o Jovem Guarda...
“Eu vou contar pra todos a história de um rapaz
que tinha há muito tempo a fama de ser mau..."
“O Rei, o Rei não tem culpa...”, diz-nos um senhor encanecido, ex-jovem guarda (e como envelheceu a jovem guarda!). “O Rei não tem culpa...”. Sim, compreendemos: quem assim nos fala quer apenas dizer, Roberto Carlos não teve culpa de fazer o medíocre, de falar aos corações da massa jovem daqueles anos. À juventude alienada, mas juventude de peso, em número, que ganha sempre da minoria de jovens estudiosos. Que mal havia em falar para a sensibilidade embrutecida mais ampla? É claro que ele não teve culpa de macaquear a revolução musical dos Beatles em versões bárbaras, em caricaturas dos cabelos longos, alisados a ferro e banha, para lisos ficarem como os dos jovens de Liverpool.
Mas é sintomático nele a passagem de cantor da juventude para o “romântico”. Essa passagem se deu na medida em que os jovens de todo o mundo deixaram de ser apenas um mercado de calças Lee e Coca-Cola, e passaram a movimentos contra a guerra do Vietnã, até mesmo em festivais de rock, como em Woodstock. Ou, se quiserem numa versão mais brasileira, o Rei Roberto se torna um senhor “romântico” na medida em que as botas militares pisam com mais força a vida brasileira. Ora, nesses angustiantes anos o que compõe o jovem, o ex-jovem, que um dia desejou que tudo mais fosse para o inferno? - Eu te amo, eu te amo, eu te amo...
É claro que a passagem do Roberto Carlos Jovem Guarda para o senhor “romântico” não se deu pelo envelhecimento do seu público. De 1965 a 1970 correm apenas 5 anos. O envelhecimento é outro. Nesses 5 correm sangue e raiva da ditadura militar, no Brasil, e crescimento da revolta do público “jovem”, no mundo. Enquanto explodem conflitos, a canção de Roberto Carlos que toca nos rádios de todo o Brasil é “Vista a roupa, meu bem” (e vamos nos casar). Se fizéssemos um gráfico, se projetássemos curvas de repressão política e de “romantismo” de Roberto Carlos, veríamos que o ápice das duas curvas é seu ponto de encontro.
Enfim, o namoro do Rei Roberto Carlos com o regime não foi um breve piscar de olhos, um flerte, um aceno à distância. O Rei não compôs só a música permitida naqueles anos de proibição. O Rei não foi só o “jovem” bem-comportado, que não pisava na grama, porque assim lhe ordenavam. Ele não foi apenas o homem livre que somente fazia o que o regime mandava. Não. Roberto Carlos foi capaz de compor pérolas, diamantes, que levantavam o mundo ordenado pelo regime. Ora, enquanto jovens estudantes eram fuzilados e caçados, enquanto na televisão, nas telas dos cinemas, exibia-se a brilhante propaganda “Brasil, ame-o ou deixe-o”, o que fez o nosso Rei? Irrompeu com uma canção que era um hino, um gospel de corações ocos, um som sem fúria de negros norte-americanos. Ora, ora, o Rei ora: “Jesus Cristo, Jesus Cristo, eu estou aqui”.
Os brasileiros executados sob tortura não estavam com Jesus. Nem Jesus com eles.
* Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici e “Soledad no Recife”. Tem inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao ensino em colégios brasileiros.
Copiei e colei o que escrevi no Vermelho. Lá, o texto rendeu até agora 56 comentários. A turma é bem opinativa.
ResponderExcluirMeu comentário:
•Foi quase isso
02/04/2011 23h15
A omissão de Roberto Carlos tem tudo a ver com a ordem de alienação dada pelo poder. O Rei se beneficou do momento de desinformação, mas não foi exatamente culpado disso. O jovem médio não tinha interesse nas más notícias. E nem acesso a elas. Queria cantar " As praias do Brasil ensolaradas" e músicas em Inglês. Meu pai era favorável aos militares e minha mãe contrária. Tínhamos acesso a informação corrente(rádio, TV e revistas,- censuradas, é fato), e, mesmo querendo, e votando no MDB em 1974, só fui saber do que a repressão tinha feito em 1980. Fui burra, é certo, mas Roberto Carlos não foi esse fator tão determinante quanto o seu artigo quer apontar.
Não sou de esquerda, nem de direita e nem tão pouco do centro. Segue o que o Vermelho recusou a publicar:
ResponderExcluirRoberto Carlos e a ditadura?
Sem que me tenha dado procuração para defender o Roberto Carlos, segue em resumo, o capítulo: Pátio de São Pedro, do livro "O Cristo Mulato"p.p.102-3
"(...) O Cristo Mulato fazia parte do grupo e disse, lembrando-se ao ouvir a música: 'Jesus Cristo...Jesus Cristo, eu estou aqui...' - Nós não devemos criar ilusões para que não sejamos simplesmente doutores de gabinete. Vocês sabem que o nosso povo é supersticioso, lembram-se do show que houve no Geraldão, que o Roberto Carlos fez em benefício dos flagelados vítimas da cheia? E nós participamos para tirar a idéia negativa da cheia do Capibaribe ter sido causada, com a frase de uma de suas músicas, em que afirmava: 'E que tudo mais, vá pro inferno'..."