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Porta aberta, nunca mais
* Por Euclides Farias
Uma amiga, dirigindo, deu o alarme. Bastou. De repente, todo mundo estava buzinando, gesticulando, gritando e implorando a imprudente motorista que fechasse uma porta do carro em movimento. Incrível, mas constatável: um corpo estendido no chão do trânsito desumanizado impressionaria menos do que aquela porta semi-aberta, essa criminosa sempre à espreita para surrupiar vidas.
-Imagine se vai uma criança no banco de trás e, na curva, a porta... Pronto: tá feita a desgraça – diz, cheia de maus presságios, a senhora que viaja num táxi. Do lado dela, a filha, herdeira da estranha doença que os especialistas convocados a estudar o fenômeno chamam, ainda a título precário, de síndrome da porta aberta, consente, enquanto põe o braço para fora da janela para ajudar, com linguagem gestual, o voluntariado a advertir o condutor: - Qualquer descuido é fatal...
Bombardeado por acenos e buzinadas, o motorista olha desesperadamente pelos retrovisores para tentar descobrir qual das portas prenuncia o apocalipse. O trânsito flui, frenético e ameaçador. Ainda mais essa, pensa um motorista que imprime grande velocidade para emparelhar e, olho no olho, sem o risco de passar batido, dar o seu recado. A manobra, tão perigosa quanto a porta aberta, ganha aprovação geral.
Pelos vidros dos carros em movimento, a vida passa em flashes, que a pressa não projeta filme com começo, meio e fim: os mendigos de sempre, as crianças abandonadas de sempre, a dor de sempre.
Mas os olhos da cidade estão fixos naquela porta aberta.
Em pânico, um taxista chega a dar uma fechada no desavisado para que saibam todos que também reprova a desatenção já amplamente condenada. Na operação, quase colide com um ônibus, mas isso não é nada, perto daquela porta aberta. Vá que ela se abre de vez e atinge alguém no meio-fio. Cruz credo!
Um semáforo adiante, e o motorista pode finalmente respirar, saindo daquele torpor próprio de quem é alvo de severa reprimenda. Estica-se em direção ao banco de trás e rebate a porta com a ponta dos dedos. Sob desconfiança dos diligentes do trânsito, que conferem direitinho a providência, ele agradece com acanhados meneios de cabeça.
O sinal verde libera a paranóia e, vrruumm, a infantaria motorizada dispara rumo a nova missão de salvamento do mundo.
• Jornalista, 48 anos de idade e 25 de profissão, exercida em O Liberal, A Província do Pará, Agência Nacional dos Diários Associados e Rádio Cultura. Atuou, como freelancer, na Folha de S. Paulo e Jornal da Tarde.
* Por Euclides Farias
Uma amiga, dirigindo, deu o alarme. Bastou. De repente, todo mundo estava buzinando, gesticulando, gritando e implorando a imprudente motorista que fechasse uma porta do carro em movimento. Incrível, mas constatável: um corpo estendido no chão do trânsito desumanizado impressionaria menos do que aquela porta semi-aberta, essa criminosa sempre à espreita para surrupiar vidas.
-Imagine se vai uma criança no banco de trás e, na curva, a porta... Pronto: tá feita a desgraça – diz, cheia de maus presságios, a senhora que viaja num táxi. Do lado dela, a filha, herdeira da estranha doença que os especialistas convocados a estudar o fenômeno chamam, ainda a título precário, de síndrome da porta aberta, consente, enquanto põe o braço para fora da janela para ajudar, com linguagem gestual, o voluntariado a advertir o condutor: - Qualquer descuido é fatal...
Bombardeado por acenos e buzinadas, o motorista olha desesperadamente pelos retrovisores para tentar descobrir qual das portas prenuncia o apocalipse. O trânsito flui, frenético e ameaçador. Ainda mais essa, pensa um motorista que imprime grande velocidade para emparelhar e, olho no olho, sem o risco de passar batido, dar o seu recado. A manobra, tão perigosa quanto a porta aberta, ganha aprovação geral.
Pelos vidros dos carros em movimento, a vida passa em flashes, que a pressa não projeta filme com começo, meio e fim: os mendigos de sempre, as crianças abandonadas de sempre, a dor de sempre.
Mas os olhos da cidade estão fixos naquela porta aberta.
Em pânico, um taxista chega a dar uma fechada no desavisado para que saibam todos que também reprova a desatenção já amplamente condenada. Na operação, quase colide com um ônibus, mas isso não é nada, perto daquela porta aberta. Vá que ela se abre de vez e atinge alguém no meio-fio. Cruz credo!
Um semáforo adiante, e o motorista pode finalmente respirar, saindo daquele torpor próprio de quem é alvo de severa reprimenda. Estica-se em direção ao banco de trás e rebate a porta com a ponta dos dedos. Sob desconfiança dos diligentes do trânsito, que conferem direitinho a providência, ele agradece com acanhados meneios de cabeça.
O sinal verde libera a paranóia e, vrruumm, a infantaria motorizada dispara rumo a nova missão de salvamento do mundo.
• Jornalista, 48 anos de idade e 25 de profissão, exercida em O Liberal, A Província do Pará, Agência Nacional dos Diários Associados e Rádio Cultura. Atuou, como freelancer, na Folha de S. Paulo e Jornal da Tarde.
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