terça-feira, 3 de agosto de 2010




Passo doble

* Por Evelyne Furtado

Ele aparece do nada e você que não é toureira encontra-se desprevenida. Não dá tempo para correr? Então use a capa que tiver à mão ou ao corpo e enfrente o touro.


O vestido vermelho lhe servirá de capa. Um frio lhe subirá pela espinha. Seu estômago dará cambalhotas. A boca ficará seca. E a cabeça rodará como se você estivesse de porre.

Se quiser desistir posso voltar. Tentarei escrever outra coisa. Mas o touro aproxima-se. Não dá mais para correr.
A sensação é de irrealidade, mas o touro é de verdade. Ainda poderá usar a capa vermelha, mas com a sua falta de habilidade os chifres do touro vão fazer dela uma manchinha vermelha voando por ai.


Você talvez não resista a uma performance, então esboce uns floreios, mas vá se preparando para ficar mais indefesa a partir de então.


O touro e você na arena. Adrenalina, cortisol e mais hormônios que não me cabe agora elencar. Pegue-o à unha e vá. Será uma experiência importante. De tão impactante que lhe dará, ao final, a impressão de que você não saberá mais andar. Você sentirá, mas não saberá dizer o que sente. Desejará sobreviver e como quem está escrevendo sou eu garanto que conseguirá.



A salvo você ainda se sentirá meio tonta. Algumas verdades serão desfeitas; suas crenças serão abaladas, seus limites estarão bem visíveis.

O touro foi pego à unha e você sobreviveu às suas arremetidas. Seu mundo mudou de eixo, mas ainda está em movimento. Ficarão pedaços de touro embaixo da unha, como a lembrar de que não foi sonho. O vestido, que foi capa, será substituído. A vida continuará, porém não como antes. Essa dança lhe deixará marcas que lhe ajudarão a continuar.

• Poetisa e cronista de Natal/RN

6 comentários:

  1. Me lembrei de uma marchinha de carnaval composta por Braguinha-Alberto Ribeiro, em 1937:
    "...Eu conheci uma espanhola
    Natural da Catalunha
    Queria que eu tocasse castanhola
    E pegasse o touro à unha
    Caramba..
    Caracoles. . .
    Sou do samba
    Não me amoles
    Pro Brasil eu vou fugir
    Que isto é conversa mole
    Para boi dormir..."
    Gostei, Evelyne!
    Beijos

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  2. Muito interessante o tom fabular deste seu texto, Evelyne. Inteligência e sensibilidade retratando as tantas touradas da vida. Olé!

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  3. Obrigada, João!
    São muitas, Marcelo.
    Obrigada e bjs.

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  4. Seria ótimo sermos os escritores reais (sei que podemos ser os maestros parciais), das nossas vidas. Seria bom poder mudar um momento desagradável com um toque. A sua sutileza na luta nossa de todos os dias, em que matamos onças, leões e touros, ficou um show. Doçura até na violência. Muito bem, Evelyne.

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  5. Insisto no doce, Mara! Beijos e obrigada.

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  6. Acontecimento marcante que deixou marcas para sempre, Evelyne? que bom!

    Beijos

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