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Uma vítima de sorte
* Por João Batista Melo
Não era muito tarde, porém a rua já estava deserta. Sozinha, a mulher aguardava o ônibus. O dia fora repleto de problemas e ela mal esperava para chegar em casa, tomar um banho, beber um cálice de vinho e apagar no sono o cansaço. Naturalmente ansiosa, conversava consigo mesmo em voz baixa, às vezes gesticulando de forma quase imperceptível. Foi então que ouviu a voz às suas costas: “Não mexa! Isto é um assalto”.
O mais sensato teria sido ela não se mexer, entregar a bolsa e rezar para que o ladrão desaparecesse o mais rápido possível. Mas, em vez disso, ela explodiu em lamúrias: “Ah, não, só me faltava essa. Um assalto? Você está brincando comigo, moço”.
A ponta do revólver cutucou-lhe as costas e o assaltante ameaçou: “Anda logo, dona. Este trem tá carregado”.
Naquele dia, ela não estava mesmo benta. Por muito menos, centenas de assaltados foram sumariamente mortos nas ruas da cidade. O ladrão já tensionava os dedos, receando alguma reação inesperada da mulher, uma arma escondida na bolsa, alguém que se aproximasse do ponto. Era hora dela recuperar o bom-senso. Afinal, estava cutucando onça com vara curta. Porém, aquele não tinha sido um dia normal. No que poderia ser considerada uma tentativa de suicídio, ela continuou a falar, atabalhoada, em tom alto e descontrolado: “Fala que é mentira, moço. Não é possível que você vai me roubar. De madrugada, o menino acordou com aquele febrão, tive até de levar ele no hospital. A chave lá de casa caiu num bueiro. E na hora de sair do serviço, fiquei sabendo que eu fui demitida. E agora, assaltada? Não é possível”.
A pressão do revólver diminuiu em suas costas. Mas continuava lá, embora o ladrão tivesse silenciado. Dois quarteirões à frente, um carro virou a esquina e entrou numa transversal antes de se aproximar. Ela ouviu o ruído do homem que começava a se afastar. Então, se virou: “Ei, aonde você vai?”
O ladrão parou, o revólver pendente na mão, confuso sobre que atitude tomar. Ela ainda conversava sem parar, a pouca distância da histeria: “Você está achando que vai me deixar sozinha? Do jeito que as coisas estão, qualquer coisa pode acontecer. Eu não vou ficar sozinha aqui nessa rua escura não, moço”.
E o assaltante ficou, calado e alguns metros à distância, ouvindo ela falar e falar e falar. Muitos minutos depois, o ônibus chegou. Ela suspirou aliviada, subiu a escada e o motorista arrancou antes dela terminar de subir. Ainda suspensa nos degraus, virou-se para o homem atônito que a olhava da calçada e gritou: “Obrigada, moço!”
*Mestre em Multimeios, pela Unicamp, fez crítica de cinema e literatura para diversos jornais e dirigiu os curtas “A quem possa interessar” e “Tampinha”. É autor das coletâneas de contos “Um pouco mais de swing” (Rocco), “As baleias do Saguenay” (Rocco) e “O Inventor de Estrelas” (Lê) e do romance “Patagônia” (Rocco), e participou da antologia “Geração 90: Manuscritos de Computador” (Boitempo).
* Por João Batista Melo
Não era muito tarde, porém a rua já estava deserta. Sozinha, a mulher aguardava o ônibus. O dia fora repleto de problemas e ela mal esperava para chegar em casa, tomar um banho, beber um cálice de vinho e apagar no sono o cansaço. Naturalmente ansiosa, conversava consigo mesmo em voz baixa, às vezes gesticulando de forma quase imperceptível. Foi então que ouviu a voz às suas costas: “Não mexa! Isto é um assalto”.
O mais sensato teria sido ela não se mexer, entregar a bolsa e rezar para que o ladrão desaparecesse o mais rápido possível. Mas, em vez disso, ela explodiu em lamúrias: “Ah, não, só me faltava essa. Um assalto? Você está brincando comigo, moço”.
A ponta do revólver cutucou-lhe as costas e o assaltante ameaçou: “Anda logo, dona. Este trem tá carregado”.
Naquele dia, ela não estava mesmo benta. Por muito menos, centenas de assaltados foram sumariamente mortos nas ruas da cidade. O ladrão já tensionava os dedos, receando alguma reação inesperada da mulher, uma arma escondida na bolsa, alguém que se aproximasse do ponto. Era hora dela recuperar o bom-senso. Afinal, estava cutucando onça com vara curta. Porém, aquele não tinha sido um dia normal. No que poderia ser considerada uma tentativa de suicídio, ela continuou a falar, atabalhoada, em tom alto e descontrolado: “Fala que é mentira, moço. Não é possível que você vai me roubar. De madrugada, o menino acordou com aquele febrão, tive até de levar ele no hospital. A chave lá de casa caiu num bueiro. E na hora de sair do serviço, fiquei sabendo que eu fui demitida. E agora, assaltada? Não é possível”.
A pressão do revólver diminuiu em suas costas. Mas continuava lá, embora o ladrão tivesse silenciado. Dois quarteirões à frente, um carro virou a esquina e entrou numa transversal antes de se aproximar. Ela ouviu o ruído do homem que começava a se afastar. Então, se virou: “Ei, aonde você vai?”
O ladrão parou, o revólver pendente na mão, confuso sobre que atitude tomar. Ela ainda conversava sem parar, a pouca distância da histeria: “Você está achando que vai me deixar sozinha? Do jeito que as coisas estão, qualquer coisa pode acontecer. Eu não vou ficar sozinha aqui nessa rua escura não, moço”.
E o assaltante ficou, calado e alguns metros à distância, ouvindo ela falar e falar e falar. Muitos minutos depois, o ônibus chegou. Ela suspirou aliviada, subiu a escada e o motorista arrancou antes dela terminar de subir. Ainda suspensa nos degraus, virou-se para o homem atônito que a olhava da calçada e gritou: “Obrigada, moço!”
*Mestre em Multimeios, pela Unicamp, fez crítica de cinema e literatura para diversos jornais e dirigiu os curtas “A quem possa interessar” e “Tampinha”. É autor das coletâneas de contos “Um pouco mais de swing” (Rocco), “As baleias do Saguenay” (Rocco) e “O Inventor de Estrelas” (Lê) e do romance “Patagônia” (Rocco), e participou da antologia “Geração 90: Manuscritos de Computador” (Boitempo).
Totalmente inesperada essa história, do começo ao fim. As pessoas são únicas em suas atitudes. Nem mesmo a ficção apostaria num final desses. Manteve o leitor preso em dúvidas, até a saída do ônibus. Muito bom!
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