domingo, 2 de maio de 2010


As cidades e a cultura

* Por Luiz Carlos Monteiro

É um fato consumado que as capitais brasileiras se movimentam com grande avidez cultural, nos campos extensivos da arte e da literatura, nestes inícios do século 21. Ninguém pode negar que, em cada uma delas, há a insurgência de um surto cultural que jamais se revela em mero continuísmo de outras décadas e gerações, em espúria macaqueação de outras regiões e países. Mas somente quem pode absorver o melhor de gerações anteriores, saberá os rumos a tomar quanto à sua própria geração. Porque os artistas, intelectuais e escritores buscam caminhos que, se não trazem nada de extraordinário no campo da inovação e da inventividade, não se caracterizam apenas pela repetição e esvaziamento. No meio destes encontros, aparições e performances organizadas ou caóticas, há que separar a palha verde do milho, o manguito mofado e travoso da manga-rosa saudável e restauradora.

Em várias manifestações artísticas e culturais existe gente se destacando. Não será preciso alinhar Brasil afora tantos nomes das artes plásticas, dança, cinema, teatro, música, literatura. Todos os dias aparecem caras novas em jornais de grande circulação. Contudo, o hábito de ler jornal diariamente está cada vez mais perdendo espaço para uma visada rápida nas manchetes, para a leitura superficial e sem compromisso de um ou outro artigo. Está se tornando uma prática maciça acompanhar o que acontece localmente ou no planeta pela Internet. Gente de empresas privadas e públicas produzindo eventos de grande, média ou pequena dimensão, blogs e sites que proliferam geometricamente, mídias mais atuais e em voga que se popularizam do dia para a noite. O acesso do mundo se faz ao alcance da mão, desde as teclas de um desktop ou de um notebook. A característica geral e em vias de uniformização dos seres humanos do pós-moderno traz de volta o individualismo e a exclusividade dos ambientes virtuais em casa, no lazer, no trabalho, na escola, em todas as extensões setorizadas da vida social.

Rasgos da cultura rural convivendo com o mais ferrenho urbanismo, com espaço para todos que quiserem trabalhar e ousar. Forrozeiros, declamadores e violeiros bem aceitos por plateias ecléticas, abrangendo desde o pesquisador universitário dos núcleos acadêmicos fechados, passando pelo funcionário público sacramentado, pelos empreendedores de opções financistas menos ambiciosas, até chegar aos jovens iconoclastas em formação. No Recife há um pessoal tão ousado que faz de toda a cultura uma festa só. São escoceses deslocados em suas saias tropicais, meninas sem senso de humor de longos coturnos e cabelos curtíssimos. Os maduros, idosos e senhoras longevas abrigam-se em academias e sociedades culturais, sem perder o vigor e a alegria de continuar burguesamente produzindo, expondo e publicando.

Neste torvelinho de vaidades em escala estática e sem ascensão visível, uma interrogação saltita no ar, pois ela deseja encontrar o artista: o poeta, o ficcionista, o pintor, o ensaísta, o cineasta, o fotógrafo. O poeta que não acumule versos no papel ou na tela simplesmente, desarrazoado e sem o senso secreto do ritmo. O ficcionista que, dentro de seu remover-se ocidental e cósmico, mostre a que veio, e se poderá ser partilhado por tantas pessoas que a vista não alcance. O pintor que não saiba apenas misturar cores e tintas, e sim transformá-las em objetos de desejo, prazer e conhecimento. O ensaísta que, na ambiência de sua especialização, mostre-se desabrido e aberto às múltiplas manifestações da arte e da cultura. O cineasta e o fotógrafo que vejam mais do que a realidade chã logra propiciar, libertos dos naturalismos e impressionismos que teimam em espetacularmente ressuscitar.

Um objeto para se brincar como outro qualquer, e de preferência, para aqueles amigos mais à frente do tempo, é a crítica cultural multifacetada em crítica sorriso, crítica coluna social, crítica acrítica. A matriz larga e cilíndrica da crítica se transforma em coisa tênue, barato, curtição para estes simulacros de analistas da própria sombra e do umbigo alheio. Abastecem e confortam uns poucos egos, a retirar de suas pretensas obras e trabalhos vistos de passagem, um salto qualitativo que tais supostas obras não comportam nem podem gerar.

É impossível negar, entretanto, ainda quando se espalham vertiginosamente tribos, confrarias e guetos, que as grandes cidades não cochilam quando se trata de cultura. A maioria dos agentes culturais não tem votos, a não ser o próprio, embora quando unidos interfiram nos orçamentos disponíveis. Posam às vezes de lideranças políticas e sujeitos politizados, cuja popularidade não resiste à primeira sabatina, enquete ou provocação pública. É preciso reconhecer que, nos cargos culturais onde corre dinheiro, não está descartado um político profissional comandando em surdina. Verbas vs. votos. E vice-versa. É o braço amigo quem aprova projetos, oficinas, shows, publicações. Que é o mesmo braço inimigo e desconhecedor da cultura, a promover nulidades. Ninguém pode mais do que estes braços todos comprimidos e juntos em torno dos fogos ambíguos e utilitários.

Não basta somente liberar verbas para pessoas ou entidades. Tem de haver algo mais que atinja a população carente de acertos básicos. Com trabalhos pontuais que precisam do mínimo de dinheiro público. Eventos que à vezes se tornam mais importantes para uma cidade do que as costumeiras apresentações diversificadas em festivais, shows, oficinas, congressos, palestras. Um trabalho subterrâneo e sem alarde midiático, de poesia, fala e teatro popular, a exemplo do de Ariano Suassuna. Composto de aulas que param e mobilizam as numerosas cidades aonde chegam, mesmo sendo a divulgação restrita. Os resultados mostram-se avassaladores, pois exibem momentos e funções populares de alegria autêntica, conscientização artística e interação criativa.

Quando se coloca um político profissional num cargo de gestão cultural, o desastre é certo e esperado. Ele vai levar consigo amigos, correligionários e gente auto-indicada ou indicada por pessoas de suas relações. Daí ao nepotismo disfarçado em obscuras genealogias ramificadas e à ausência de estratégias e ações é um passo. Se o gestor, de outra parte, é um fazedor de cultura, poderá ter bom trânsito entre fazedores de cultura, mas, quase sempre, se mostrará sofrível administrador e político. Um terceiro caso é o do gestor que é apenas técnico na área envolvida, que poderá ser bom administrador, contudo não gozará de transitação política nem entre quem produz cultura.

Para o mandatário de um Estado ou de uma cidade, esta é uma equação difícil de ser resolvida. No seu íntimo, preferiam talvez nomear alguém da política, por motivos e injunções óbvias. Podem ceder à tentação de indicar um nome proposto em amizade. Ou pela mera competência técnica. O desejável seria, para os cargos da cultura, nomes que aliassem, além de compromisso cultural já comprovado, as três condições referidas: a política, a técnica e a cultural. Algo espinhoso de se encontrar nos dias de hoje, pois todo mundo tem a necessidade de especializar-se em alguma área ou matéria, como consequência dos avanços da globalização e da competitividade.

* Poeta, crítico literário e ensaísta, blog www.omundocircundande.blogspot.com

3 comentários:

  1. Que Ariano Suassuna é uma personalidade importante no País no campo da literatura, não podemos negar, mas como secretário de Estado, nunca se manifestou em prol das realizações locais, baseadas nos livros dos autores nordestinos. Ele preocupa-se apenas com os seriados da TV Globo e com as encenações de suas peças teatrais (Armorial/Aula-espetáculo).
    Já foi vaiado e fortemente criticado (1998) pelos especialistas locais e do Sul do País, durante abertura do 1º Festival Recife do Teatro Nacional. Na minha opinião, como escritor nota "10", como secretário nota "0"!
    Abraços do,
    José Calvino
    RecifeOlinda

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  2. Também aqui na minha cidade, Montes Claros, norte de Minas, a secretaria desse setor é a mais criticada. Parece envolver conhecimentos mais amplos do que das outras áreas. Muitas discordâncias portanto.

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  3. Caro José Calvino,
    não sou advogado de defesa de Ariano, mas os seguintes pontos devem ser esclarecidos: a Secretaria que Ariano ocupa hoje, não dispõe de verbas nem para pagar o violeiro Oliveira de Panelas, que o acompanha nas aulas-espetáculo. É preciso recorrer à Fundarpe, que é uma fundação, mas com o status de Secretaria. Sendo assim, Ariano fica de mãos atadas para empreender qualquer ação cultural que envolva recursos - humanos e materiais. Assisti a aulas-espetáculo dele na UFPE, na Fliporto e no interior, nas quais ele foi aplaudido de pé pelas plateias ecléticas que o prestigiavam. O seu enorme sucesso vem desde a segunada metade dos anos 1940, com as primeiras peças encenadas. As plateias que eventualmente o vaiam são feitas de artistas, escritores e intelectuais ressentidos, no mais das vezes. Tais figuras não aceitam, principalmente no Recife, o sucesso merecido que ele tem feito com seus livros e peças. Se você for fazer uma enquete sobre o trabalho literário de Ariano, com respostas que primem pela honestidade e sinceridade, vai constatar que pouca gente leu A Pedra do Reino. E que alguns combatem Ariano apenas por combater. Não concordo em absoluto com algumas coisas que ele fala e prega, mas é preciso lembrar que ele também é humano.
    Abraços,
    Luiz Carlos

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