

Triângulo sem bermudas
* Por Ronaldo Bressane
A segunda vinda de Medeski Martin & Wood
Lotado de candidatas a Bruna Surfistinha na captura de seu maurício de camisa branca passada pela mamãe, o Bourbon Street no último 23 de março parece uma convenção de gerentes de marketing em Campos de Jordão: há sempre idiotas que soltam aquela frase cretina bem na hora em que no palco a banda dá à luz um micro-silêncio. Contudo, enquanto mal-amados pegam a fila pra pagar a conta antes da metade do show, uns 40% se interessam em ouvir música e escancaram os ouvidos para Medeski Martin & Wood, o mais californiano dos power trios de jazz de NY, branquelos na faixa dos 35 anos que recriaram brilhantemente a tradição negra do improviso. No templo paulistano dos jazzistas, há mais negros em retratos nas paredes (Billie, BB, Ray...) que chacoalhando uisquinhos – a proporção é de 95 pra 5. É uma selva aqui dentro da área vip, é o que você pensa tentando enfiar suas orelhas entre uma loura siliconada que lhe implora um cigarro, um coroa malhadão que paga de moderno fotografando a si próprio no celular tendo a banda como cenário, um playboy que gastou todo o estoque de água de colônia Giorgio Armani e agora briga com o garçom porque sua Coca não está gelada e as intromissões imbecis do DJ, que corta o primeiro set do trio com uma versão soul de Bohemian Rhapsody (!)... O cartaz lá fora já avisava: o ingresso é R$ 150 e é proibido entrar de chinelos ou bermudas, seu mané.
Felizmente, o contrabaixo de Chris Wood é estilingado, atravessado por um arco, percutido, lanhado, slideficado – elegante, porém, nunca perde o rumo. Com transtorno de déficit de atenção – que outra explicação para um baterista que não leva a mesma levada duas vezes seguidas? – , Billy Martin troca os próprios pratos de sua bateria (roadies são para crianças) enquanto caminha em baquetas por todas as superfícies ao redor, as paredes, o chão, os amplificadores, e até mesmo seu set de percussão, pouco antes de tocar com... pombas. E, invertendo o dito de que são necessários sete poloneses para trocar uma lâmpada, o iluminado polaco John Medeski parece ter sete braços. Sua careca de cientista maluco brilha de suor: olhos perdidos, concentração maníaca e tiques vocais sublinham cada quebra de andamento, ele nunca descansa. O gorducho se transforma em polvo pra cima de sete instrumentos aparentemente iguais mas totalmente diversos: um órgão Hammond B3, um piano elétrico Fender Rhodes, um Wurlitzer, um Mellotron, um sintetizador Yamaha, um Moog, e, ah, sim, um piano – único que toca de costas para a platéia, introspectivo. Sem posar de superstar, com seu porte de peão de fábrica, Medeski reinventa a linhagem do multitecladista, mais vintage que supertecnológico, mais percussivo que melódico, uma miscigenação quase bizarra entre João Donato, John Cage e Keith Jarret, se é que isso é possível.
Mas, por certo, aqui Hermeto abre os caminhos. E também Tom Jobim, Bob Marley, John Coltrane, Thelonious Monk, Sly Stone e, vá, até Doors , Hendrix e Morphine passeiam pelo palco. O californiano Chris Wood, filho de uma poeta beat, quando toca seu contrabaixo alemão parece abraçar aquele amigo que bebeu demais – ele só o ajuda a atravessar a rua, sem perder jamais a compostura, o tempo e a piada (que pode ser a transformação de uma corda numa cuíca). O único a ficar de pé durante todo o show tira o Fender pra dançar com precisão matemática, e ainda assim é a alma blueseira da banda (mas também sabe fazer o baixo soar como uma guitarra de thrash metal). Quantas notas podem ser enfiadas entre dois meio-contratempos? Pergunte ao chimbau do líder Billy Martin. Filho de violinista e pupilo de John Lurie e John Zorn, Billy, que teve uma banda novaiorquina chamada Batucada, irá responder nanavasconcelamente – possesso, temos a convicção de que em algum momento vai descer do palco e disparar as baquetas nas cabeças dos baba-ovos. E, afinal, como esse careca consegue tocar tantos teclados ao mesmo tempo e não parecer um estúpido Wakeman? O segredo do dostoievskiano Medeski (o primeiro álbum da banda é intitulado Notes from the underground), que, adotado por artistas, começou a ler antes sequer de falar e a tocar piano com 3 anos de idade, talvez esteja no prosaico fato de aos 13 ele ter sido campeão de... nado de costas. Gênio total é definição simplista.
MM&W faz o simples parecer complexo – as harmonias são às vezes centradas em apenas duas notas. Para que mais, para quem tem dois ouvidos? O nome é de escritório de advocacia, mas esses caras aqui nos convencem que o diabo é o groove, foi aí que o jazz nasceu, não se esqueçam disso. Como descrever uma paisagem sonora? Não adianta empilhar rótulos (as fontes: o bebop, o funk, a bossanova, o reggae, o free jazz, o son, a tradição clássica européia...). Ou tentar desvendar a técnica (ataques exatos, compreensão absurda de clima e dinâmica, senso de humor, senso de tragédia, proporções iguais de experimentalismo e lirismo, surrealismo, expressionismo e cubanismo, blend saboroso de tema e improviso, riqueza de timbres que faz com que cada músico pareça tocar no mínimo três instrumentos...). Empilhar adjetivos não funciona... quem sabe lembrar daquela volta numa montanha russa em Marte, de um beijo francês numa praia baiana, seus neurônios nadando crawl dissolvidos naquele copo ali em cima do piano, fantasmas swingando debaixo da cama enquanto nos lençóis se pratica um banguebangue, um barco de papel que baila teimoso numa tempestade caribenha, fadas madrinhas docemente levando você pela mão por túneis e viadutos a 200 por hora... A conta do Bourbon é grande (apesar da boiada no ingresso...) mas, muitos flashbacks de ácido depois, enquanto você tenta segurar sua cabeça com os ouvidos, sorriso bestificado na cara, abraçando o trio à saída do show feito fossem teus amigos de infância, você se lembra que a vida é muito maior... Como talvez pensasse Keroauc (uma trilha sobre o romance Dr. Sax é o próximo plano do MM&W), a vida pode ser um groove sem fim.
*Escritor, jornalista e editor. Edita a revista V (www.vw.com.br/revistav) e colabora com várias publicações, como Trip, Vogue e TPM. É um dos co-editores da coleção Risco:Ruído, da editora DBA, e do blog coletivo FakerFakir (www.fakerfakir.biz).
* Por Ronaldo Bressane
A segunda vinda de Medeski Martin & Wood
Lotado de candidatas a Bruna Surfistinha na captura de seu maurício de camisa branca passada pela mamãe, o Bourbon Street no último 23 de março parece uma convenção de gerentes de marketing em Campos de Jordão: há sempre idiotas que soltam aquela frase cretina bem na hora em que no palco a banda dá à luz um micro-silêncio. Contudo, enquanto mal-amados pegam a fila pra pagar a conta antes da metade do show, uns 40% se interessam em ouvir música e escancaram os ouvidos para Medeski Martin & Wood, o mais californiano dos power trios de jazz de NY, branquelos na faixa dos 35 anos que recriaram brilhantemente a tradição negra do improviso. No templo paulistano dos jazzistas, há mais negros em retratos nas paredes (Billie, BB, Ray...) que chacoalhando uisquinhos – a proporção é de 95 pra 5. É uma selva aqui dentro da área vip, é o que você pensa tentando enfiar suas orelhas entre uma loura siliconada que lhe implora um cigarro, um coroa malhadão que paga de moderno fotografando a si próprio no celular tendo a banda como cenário, um playboy que gastou todo o estoque de água de colônia Giorgio Armani e agora briga com o garçom porque sua Coca não está gelada e as intromissões imbecis do DJ, que corta o primeiro set do trio com uma versão soul de Bohemian Rhapsody (!)... O cartaz lá fora já avisava: o ingresso é R$ 150 e é proibido entrar de chinelos ou bermudas, seu mané.
Felizmente, o contrabaixo de Chris Wood é estilingado, atravessado por um arco, percutido, lanhado, slideficado – elegante, porém, nunca perde o rumo. Com transtorno de déficit de atenção – que outra explicação para um baterista que não leva a mesma levada duas vezes seguidas? – , Billy Martin troca os próprios pratos de sua bateria (roadies são para crianças) enquanto caminha em baquetas por todas as superfícies ao redor, as paredes, o chão, os amplificadores, e até mesmo seu set de percussão, pouco antes de tocar com... pombas. E, invertendo o dito de que são necessários sete poloneses para trocar uma lâmpada, o iluminado polaco John Medeski parece ter sete braços. Sua careca de cientista maluco brilha de suor: olhos perdidos, concentração maníaca e tiques vocais sublinham cada quebra de andamento, ele nunca descansa. O gorducho se transforma em polvo pra cima de sete instrumentos aparentemente iguais mas totalmente diversos: um órgão Hammond B3, um piano elétrico Fender Rhodes, um Wurlitzer, um Mellotron, um sintetizador Yamaha, um Moog, e, ah, sim, um piano – único que toca de costas para a platéia, introspectivo. Sem posar de superstar, com seu porte de peão de fábrica, Medeski reinventa a linhagem do multitecladista, mais vintage que supertecnológico, mais percussivo que melódico, uma miscigenação quase bizarra entre João Donato, John Cage e Keith Jarret, se é que isso é possível.
Mas, por certo, aqui Hermeto abre os caminhos. E também Tom Jobim, Bob Marley, John Coltrane, Thelonious Monk, Sly Stone e, vá, até Doors , Hendrix e Morphine passeiam pelo palco. O californiano Chris Wood, filho de uma poeta beat, quando toca seu contrabaixo alemão parece abraçar aquele amigo que bebeu demais – ele só o ajuda a atravessar a rua, sem perder jamais a compostura, o tempo e a piada (que pode ser a transformação de uma corda numa cuíca). O único a ficar de pé durante todo o show tira o Fender pra dançar com precisão matemática, e ainda assim é a alma blueseira da banda (mas também sabe fazer o baixo soar como uma guitarra de thrash metal). Quantas notas podem ser enfiadas entre dois meio-contratempos? Pergunte ao chimbau do líder Billy Martin. Filho de violinista e pupilo de John Lurie e John Zorn, Billy, que teve uma banda novaiorquina chamada Batucada, irá responder nanavasconcelamente – possesso, temos a convicção de que em algum momento vai descer do palco e disparar as baquetas nas cabeças dos baba-ovos. E, afinal, como esse careca consegue tocar tantos teclados ao mesmo tempo e não parecer um estúpido Wakeman? O segredo do dostoievskiano Medeski (o primeiro álbum da banda é intitulado Notes from the underground), que, adotado por artistas, começou a ler antes sequer de falar e a tocar piano com 3 anos de idade, talvez esteja no prosaico fato de aos 13 ele ter sido campeão de... nado de costas. Gênio total é definição simplista.
MM&W faz o simples parecer complexo – as harmonias são às vezes centradas em apenas duas notas. Para que mais, para quem tem dois ouvidos? O nome é de escritório de advocacia, mas esses caras aqui nos convencem que o diabo é o groove, foi aí que o jazz nasceu, não se esqueçam disso. Como descrever uma paisagem sonora? Não adianta empilhar rótulos (as fontes: o bebop, o funk, a bossanova, o reggae, o free jazz, o son, a tradição clássica européia...). Ou tentar desvendar a técnica (ataques exatos, compreensão absurda de clima e dinâmica, senso de humor, senso de tragédia, proporções iguais de experimentalismo e lirismo, surrealismo, expressionismo e cubanismo, blend saboroso de tema e improviso, riqueza de timbres que faz com que cada músico pareça tocar no mínimo três instrumentos...). Empilhar adjetivos não funciona... quem sabe lembrar daquela volta numa montanha russa em Marte, de um beijo francês numa praia baiana, seus neurônios nadando crawl dissolvidos naquele copo ali em cima do piano, fantasmas swingando debaixo da cama enquanto nos lençóis se pratica um banguebangue, um barco de papel que baila teimoso numa tempestade caribenha, fadas madrinhas docemente levando você pela mão por túneis e viadutos a 200 por hora... A conta do Bourbon é grande (apesar da boiada no ingresso...) mas, muitos flashbacks de ácido depois, enquanto você tenta segurar sua cabeça com os ouvidos, sorriso bestificado na cara, abraçando o trio à saída do show feito fossem teus amigos de infância, você se lembra que a vida é muito maior... Como talvez pensasse Keroauc (uma trilha sobre o romance Dr. Sax é o próximo plano do MM&W), a vida pode ser um groove sem fim.
*Escritor, jornalista e editor. Edita a revista V (www.vw.com.br/revistav) e colabora com várias publicações, como Trip, Vogue e TPM. É um dos co-editores da coleção Risco:Ruído, da editora DBA, e do blog coletivo FakerFakir (www.fakerfakir.biz).
Melhor ler o relatório do que me embrenhar no show. Aqui conheço o grupo e me divirto, sem o risco dos atrasos e das crises de estrelismo.
ResponderExcluir