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Provei do sangue, a ver se era real
* Por Eduardo Murta
A cena, vista em câmera lenta, carrega o ingrediente amargo de tragédia. Normando ao centro do palco, as luzes focadas no rosto empapado em suor. O dedo indicador a meio encaixe de puxar o gatilho. A plateia chocada. Gelo na imagem para remeter a um Normando de meses atrás. Escritor dramático. Número um do rádio. Homem que ditava moda. Conquistador. Astro entre as mulheres. Charmoso. Elegantemente mentiroso. Contam que fantasiava com tamanha convicção a ponto de estimular correntes de solidariedade em episódios rocambolescos, como o dia em que se prendera à janela da amante. Flagrado, convencera a audiência – incluindo o marido traído – de que fora parar ali sob a mira de revólveres, numa armadilha da concorrência. Terminou paparicado com cestas de ovos caipira, biscoitos artesanais, garrafas de pinga e livros de autoajuda.
Não faltaria o fã-clube, mais se aproximando de um bando de marias-carpideiras, solícitas em ouvi-lo. Lá distribuía lenços e, em segredos de ouvido, marcava encontros noite afora. Havia quem enxergasse pacto diabólico em suas conquistas, porque carregava uma gripe incurável que lhe punha o nariz em condição de miserabilidade. E por vezes se arrastava, numa crise de gota destroçando os calcanhares.
O ar de originalidade é que talvez o salvasse. Fora o primeiro da cidade a assumir que experimentara maconha, a defender o aborto, a pedir o fim do embargo a Cuba. E conseguira emplacar linguagem inovadora em seus folhetins numa emissora AM, com direito a auditório. Na contracorrente, instituíra a morte dos finais felizes. Assim, preferia o fog de Londres às manhãs tropicais; a viúva enclausurada à perua baladeira; a garotinha que ficara cega diante da Monalisa a um milagre da ciência. Mais: se constituíra prova viva de que nem todo mentiroso era decididamente um mau caráter.
As fãs o acolhiam em jeito compreensivo. Choravam quando ele, teatral, pedia perdão, e formavam filas à porta da rádio. Às 6 em ponto não havia uma só cadeira disponível no teatro. Plena era da Internet, naquele horário Normando era absoluto. Suprema glória o instante em que a plateia da radionovela se despedaçava em angústia solidária à dor dos personagens. Ele da coxia também se dissolvendo num choro sincero. E, em minúcias, maquinando a morte emblemática, a doença devastadora, o desamor que incendiaria esperanças vãs.
Os atores repassando o texto em tom de quem vela um morto, veio a determinação do novo diretor. Ordem para final feliz. E ponto. Normando se viu em condição de mamulengo. Roeu unhas. Espatifou copos de uísque no bojo da pia. Rasgou, num picotado milimétrico, o capítulo de despedida.
Noite do desfecho, apareceu por lá perfumado em discreta alfazema. Periscopeou o público cativo. Confirmou a presença do chefe na galeria vip. E, minutos finais, irrompeu o palco aos gritos, arma em punho. Rodou, como estivesse em êxtase, domou o pavor do público. E deixou para as fãs o destino de tudo aquilo. Queriam final feliz ou drama? Gelo na imagem. O dedo indicador disparando cinco vezes. O diretor despencando ao centro. O sangue. As palmas. A aclamação, porque a cena soava real para além da conta. Bravíssimo.
* Jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. É secretário de Redação do jornal Hoje em Dia, diário de Belo Horizonte. Já teve passagens também pelos jornais Diário de Minas e Estado de Minas, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas do Hoje em Dia (www.hojeemdia.com.br), onde publica às quartas.
* Por Eduardo Murta
A cena, vista em câmera lenta, carrega o ingrediente amargo de tragédia. Normando ao centro do palco, as luzes focadas no rosto empapado em suor. O dedo indicador a meio encaixe de puxar o gatilho. A plateia chocada. Gelo na imagem para remeter a um Normando de meses atrás. Escritor dramático. Número um do rádio. Homem que ditava moda. Conquistador. Astro entre as mulheres. Charmoso. Elegantemente mentiroso. Contam que fantasiava com tamanha convicção a ponto de estimular correntes de solidariedade em episódios rocambolescos, como o dia em que se prendera à janela da amante. Flagrado, convencera a audiência – incluindo o marido traído – de que fora parar ali sob a mira de revólveres, numa armadilha da concorrência. Terminou paparicado com cestas de ovos caipira, biscoitos artesanais, garrafas de pinga e livros de autoajuda.
Não faltaria o fã-clube, mais se aproximando de um bando de marias-carpideiras, solícitas em ouvi-lo. Lá distribuía lenços e, em segredos de ouvido, marcava encontros noite afora. Havia quem enxergasse pacto diabólico em suas conquistas, porque carregava uma gripe incurável que lhe punha o nariz em condição de miserabilidade. E por vezes se arrastava, numa crise de gota destroçando os calcanhares.
O ar de originalidade é que talvez o salvasse. Fora o primeiro da cidade a assumir que experimentara maconha, a defender o aborto, a pedir o fim do embargo a Cuba. E conseguira emplacar linguagem inovadora em seus folhetins numa emissora AM, com direito a auditório. Na contracorrente, instituíra a morte dos finais felizes. Assim, preferia o fog de Londres às manhãs tropicais; a viúva enclausurada à perua baladeira; a garotinha que ficara cega diante da Monalisa a um milagre da ciência. Mais: se constituíra prova viva de que nem todo mentiroso era decididamente um mau caráter.
As fãs o acolhiam em jeito compreensivo. Choravam quando ele, teatral, pedia perdão, e formavam filas à porta da rádio. Às 6 em ponto não havia uma só cadeira disponível no teatro. Plena era da Internet, naquele horário Normando era absoluto. Suprema glória o instante em que a plateia da radionovela se despedaçava em angústia solidária à dor dos personagens. Ele da coxia também se dissolvendo num choro sincero. E, em minúcias, maquinando a morte emblemática, a doença devastadora, o desamor que incendiaria esperanças vãs.
Os atores repassando o texto em tom de quem vela um morto, veio a determinação do novo diretor. Ordem para final feliz. E ponto. Normando se viu em condição de mamulengo. Roeu unhas. Espatifou copos de uísque no bojo da pia. Rasgou, num picotado milimétrico, o capítulo de despedida.
Noite do desfecho, apareceu por lá perfumado em discreta alfazema. Periscopeou o público cativo. Confirmou a presença do chefe na galeria vip. E, minutos finais, irrompeu o palco aos gritos, arma em punho. Rodou, como estivesse em êxtase, domou o pavor do público. E deixou para as fãs o destino de tudo aquilo. Queriam final feliz ou drama? Gelo na imagem. O dedo indicador disparando cinco vezes. O diretor despencando ao centro. O sangue. As palmas. A aclamação, porque a cena soava real para além da conta. Bravíssimo.
* Jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. É secretário de Redação do jornal Hoje em Dia, diário de Belo Horizonte. Já teve passagens também pelos jornais Diário de Minas e Estado de Minas, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas do Hoje em Dia (www.hojeemdia.com.br), onde publica às quartas.
O ator é tão convincente
ResponderExcluirque mesmo pendurados entre
o que é real ou ilusão...que
os aplausos não cessarão tamanha
a verossimilhança.
beijos
Muito bom o conto.
ResponderExcluirPrende a atenção.
Gostei muito. Texto ágil, gostaria de tê-lo conhecido...
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