
Há um pingo de luz no firmamento
* Por Eduardo Murta
Vendo a pequena assim, a um braço de ser tocada, os contrastes competem em arrebatamento: o vermelho-tourada das maçãs do amor e o verde-estação-chuvosa dos olhos. Chamava-se Irina. Não teria mais que 8 anos. E a vozinha, entre rouca e cândida, oferecendo tabuleiro de frutas e fazendo sonhar. Aos que compravam, porque artigo nobre em arquibancadas de circo, e a ela mesma, porque Vô Amâncio prometia o mundo se retornasse com as caixas vazias. Nada menos que uma conta de estrelas do firmamento.
As Três Marias, o conjunto em forma de Escorpião e o Cruzeiro do Sul, assim, haviam se transformado em bibelôs da princesinha do vilarejo. E, por mera casualidade, entraria eu naquele emaranhado de sonhos. Jogava bolinha de gude no entorno da praça, quando ouvi o chamado. Jeito de quem invocava um favor, o velhinho combinou assobio discreto com um aceno de mão velado.
Fui. Encarei os lábios derivando de uma rede densa de vincos. Tremiam sob as rugas. Ficaram naquele movimento de hesitação, até balbuciarem a primeira palavra. Perguntou apenas se eu responderia que sim. Fiz sinal afirmativo. Logo exibiu o que o inspirava: apontou a netinha cruzando a terra batida em direção ao armazém, em silhueta ao jacarandá mimoso. Tempo de floradas. Inda que pernas grossas, nutria ares de gazela mansa.
Expôs o plano. Me queria zelando pela menina, eu, menino também, mal chegado aos 11 anos. Daria até ofício, ele mesmo provendo. Acertou contrato com a matrona circense. E, domingo seguinte, como palhaço-assistente, eu faria minha estreia. Em papel canhestro, roupas tom de arco-íris, correndo sem norte pelo chão nu do lugar. Trombando em elefantes, tropeçando em cordas. A mirada, porém, sem despregar de Irina.
O avô temia, sobressaltos da época, que fosse tomada por ciganos ou gente forasteira. Seus olhos ecoavam fama. Pintores do Baixo Guandu já haviam rompido rio acima por dois dias, o remo desenhando caminho, a que a retratassem. Retrocederiam, sem permissão. E a saca de dinheiro de coronel Matoso, então, a família lera como heresia-mor. Ninguém ali estava à venda. Sequer foi permitido que colocasse os pés na sala, despachado antes mesmo de vencer o portão.
Por tudo isso, a vigilância ganhou corpo e intensidade. Primo Zezinho, peixeiras lustradas, e Sô Lima, polícia reformado, mortes no currículo, passaram a integrar a guarda. Eu me afeiçoando às macaquices de picadeiro sem jamais perder a protegida de vista. E, noutra ponta, a candura de Irina ditando em mim os feitiços sutis de encantamento. Os pezinhos emoldurados nas sandalhinhas de couro baixas e aquele ar de Monalisa do sertão. A história ligeiramente moldando um refém. E não seria ela.
Naquela noite, as 18 unidades de maçãs vendidas, voltaria para casa com sabor de festa na boca. O coração miúdo alimentando o desejo do presente prometido. Foi variando e, ao jardim, um sentimento de solidão leve lhe varreu. Estranhou. Tocou a maçaneta e veio o pressentimento trágico. Silêncio de capela, meia-luz. Revés, coisa de inferno o que viu lá dentro. Desgarrou rua afora gritando mataram, mataram, mataram... Foi comigo que topou primeiro. Vestes de palhaço ainda. Nem maquiagem desfeita. Se agarrou como num abraço de afogado.
Enlaçou-se em mim, que as cores difusas foram lhe tomando a face. O choro quente desbotando os tons. Até que adormecesse. E estava eu ali, menino, invocando alguém que iluminasse meu destino. Amparando uma Irina que, num ponto qualquer, transformara por definitivo minha vida. A ela restavam destroços e eu, sem desejar, mas querendo, era parte essencial do que lhe sobrara. Perdido também, mas convertido em vaga promessa de conta de estrelas. Guia. Pingo de luz no firmamento
* Jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. É secretário de Redação do jornal Hoje em Dia, diário de Belo Horizonte. Já teve passagens também pelos jornais Diário de Minas e Estado de Minas, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas do Hoje em Dia (www.hojeemdia.com.br), onde publica às quartas.
* Por Eduardo Murta
Vendo a pequena assim, a um braço de ser tocada, os contrastes competem em arrebatamento: o vermelho-tourada das maçãs do amor e o verde-estação-chuvosa dos olhos. Chamava-se Irina. Não teria mais que 8 anos. E a vozinha, entre rouca e cândida, oferecendo tabuleiro de frutas e fazendo sonhar. Aos que compravam, porque artigo nobre em arquibancadas de circo, e a ela mesma, porque Vô Amâncio prometia o mundo se retornasse com as caixas vazias. Nada menos que uma conta de estrelas do firmamento.
As Três Marias, o conjunto em forma de Escorpião e o Cruzeiro do Sul, assim, haviam se transformado em bibelôs da princesinha do vilarejo. E, por mera casualidade, entraria eu naquele emaranhado de sonhos. Jogava bolinha de gude no entorno da praça, quando ouvi o chamado. Jeito de quem invocava um favor, o velhinho combinou assobio discreto com um aceno de mão velado.
Fui. Encarei os lábios derivando de uma rede densa de vincos. Tremiam sob as rugas. Ficaram naquele movimento de hesitação, até balbuciarem a primeira palavra. Perguntou apenas se eu responderia que sim. Fiz sinal afirmativo. Logo exibiu o que o inspirava: apontou a netinha cruzando a terra batida em direção ao armazém, em silhueta ao jacarandá mimoso. Tempo de floradas. Inda que pernas grossas, nutria ares de gazela mansa.
Expôs o plano. Me queria zelando pela menina, eu, menino também, mal chegado aos 11 anos. Daria até ofício, ele mesmo provendo. Acertou contrato com a matrona circense. E, domingo seguinte, como palhaço-assistente, eu faria minha estreia. Em papel canhestro, roupas tom de arco-íris, correndo sem norte pelo chão nu do lugar. Trombando em elefantes, tropeçando em cordas. A mirada, porém, sem despregar de Irina.
O avô temia, sobressaltos da época, que fosse tomada por ciganos ou gente forasteira. Seus olhos ecoavam fama. Pintores do Baixo Guandu já haviam rompido rio acima por dois dias, o remo desenhando caminho, a que a retratassem. Retrocederiam, sem permissão. E a saca de dinheiro de coronel Matoso, então, a família lera como heresia-mor. Ninguém ali estava à venda. Sequer foi permitido que colocasse os pés na sala, despachado antes mesmo de vencer o portão.
Por tudo isso, a vigilância ganhou corpo e intensidade. Primo Zezinho, peixeiras lustradas, e Sô Lima, polícia reformado, mortes no currículo, passaram a integrar a guarda. Eu me afeiçoando às macaquices de picadeiro sem jamais perder a protegida de vista. E, noutra ponta, a candura de Irina ditando em mim os feitiços sutis de encantamento. Os pezinhos emoldurados nas sandalhinhas de couro baixas e aquele ar de Monalisa do sertão. A história ligeiramente moldando um refém. E não seria ela.
Naquela noite, as 18 unidades de maçãs vendidas, voltaria para casa com sabor de festa na boca. O coração miúdo alimentando o desejo do presente prometido. Foi variando e, ao jardim, um sentimento de solidão leve lhe varreu. Estranhou. Tocou a maçaneta e veio o pressentimento trágico. Silêncio de capela, meia-luz. Revés, coisa de inferno o que viu lá dentro. Desgarrou rua afora gritando mataram, mataram, mataram... Foi comigo que topou primeiro. Vestes de palhaço ainda. Nem maquiagem desfeita. Se agarrou como num abraço de afogado.
Enlaçou-se em mim, que as cores difusas foram lhe tomando a face. O choro quente desbotando os tons. Até que adormecesse. E estava eu ali, menino, invocando alguém que iluminasse meu destino. Amparando uma Irina que, num ponto qualquer, transformara por definitivo minha vida. A ela restavam destroços e eu, sem desejar, mas querendo, era parte essencial do que lhe sobrara. Perdido também, mas convertido em vaga promessa de conta de estrelas. Guia. Pingo de luz no firmamento
* Jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. É secretário de Redação do jornal Hoje em Dia, diário de Belo Horizonte. Já teve passagens também pelos jornais Diário de Minas e Estado de Minas, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas do Hoje em Dia (www.hojeemdia.com.br), onde publica às quartas.
Então nem tudo está perdido.
ResponderExcluirAinda havia o refúgio num abraço
e um pingo de luz como esperança...
Parabéns Eduardo.
beijos
Sorte a de Irina que perdeu o avô mas encontrou quem a protegerá. Belo texto.
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