quinta-feira, 4 de março de 2010




Forma, conteúdo

* Por Luiz Carlos Monteiro

Para que alcance sua plena realização, um texto exige uma linguagem interna que o veicule e um código sígnico que permita a sua decifração externa. Isto remonta à questão forma-conteúdo, que aparece já no século 4 na Poética de Aristóteles, quando são estabelecidas distinções entre os metros de versos heróicos e jâmbicos e entre os ritmos mais comuns da poesia e da narrativa, tendo como base os gêneros da epopeia e do drama. Mesmo que algo do que escreveu tenha perdido o impacto inicial, a obra aristotélica prossegue sendo modificada, substituída, acrescida e adaptada ao longo do tempo. A poesia estrutural de Homero encontra uma continuidade formal em Virgílio na reutilização dos hexâmetros. Mas, quando se passa da épica virgiliana ao esforço gigantesco da obra de Dante, há uma mudança expressiva que vai envolver a terza rima como metro preferencial. Posteriormente, a oitava de Ariosto e o soneto petrarquiano serão amplamente usados e trabalhados. Os herdeiros de Dante serão, nas primeiras décadas do século 20, Eliot e Pound. A ficção assistirá ao desempenho conteudístico-formal inovador de Joyce, inigualável para a época, que mudará totalmente as maneiras literárias tradicionais de escrever prosa e poesia. Em termos de França e Brasil, a distância ficará menor entre Baudelaire e os simbolistas e pré-modernistas, Valéry e João Cabral, Mallarmé e os concretistas.

Cada tendência crítica e analítico-interpretativa institui o seu próprio sistema de elaborar esse binômio, que recebe também denominações como forma e fundo, significante e significado, forma e evento, sentido e expressão, texto e contexto entre outras. Em Questões de Literatura e Estética, num capítulo escrito em 1924, o filólogo russo Mikhail Bakhtin afirma veementemente: “O conteúdo representa o momento constitutivo indispensável do objeto estético, ao qual é correlativa a forma estética que, fora dessa relação, em geral, não tem nenhum significado”. Bakhtin aplicou seus conhecimentos e teorizações literárias principalmente ao romance, veiculando conceitos novos (polifonia de vozes, por exemplo) para os inícios do século passado e investigando a prosa de ficção desde a Antiguidade. O que ele chama de conteúdo do objeto estético é a realidade do conhecimento e do ato estético, ou seja, o mundo exterior visto pelo escritor e internalizado na obra que este executa, aliado a uma forma que dá sentido e função a seres, paisagens, vivências e objetos. O fechamento de certas afirmações bakhtinianas será combatido impiedosamente, do mesmo modo que sua melhor contribuição aos estudos literários e linguísticos será acatada e adotada por muitos críticos e escritores que o sucederam.

A teoria pós-moderna envolve conceituações de paródia e intertextualidade para definir o que Linda Hutcheon chama, em Poética do Pós-modernismo, de metaficção historiográfica: “Em seu aspecto exterior, poderia parecer que o principal interesse do pós-modernismo são os processos de sua própria produção e recepção, bem como sua relação paródica com a arte do passado”. Ainda conforme ela, “é exatamente a paródia – esse formalismo aparentemente introvertido – que provoca, de forma paradoxal, uma confrontação direta com o problema da relação do estético com o mundo de significação exterior a si mesmo, com um mundo discursivo de sistemas semânticos socialmente definidos (o passado e o presente) – em outras palavras, com o político e o histórico”. Deste modo o pós-modernismo, apesar da inconsistência teórica que o cerca, neste momento melhor definida para a arquitetura que para as outras artes e a literatura, logra inaugurar uma relação seminal entre arte e mundo, entre linguagem e realidade. A paródia serve de referência principal para se fixar a ligação intertextual entre formas ficcionais ou poéticas do presente com os textos de autores clássicos e modernistas, transformando-os, renegando-os e retrabalhando influências.

Há uma proposta como a do crítico Alfredo Bosi em sua coletânea crítica Céu, inferno, baseada em definição do filósofo italiano Carlo Diano para forma e conteúdo, na qual este último deveria ser substituído por evento. Assim evento seria, na adaptação de Bosi da filosofia para a literatura, “todo acontecer vivido da existência que motiva as operações textuais, nelas penetrando como temporalidade e subjetividade”. No entanto, ao se pensar na funcionalidade de evento, ele não resultaria tão objetivo assim, pois estaria situado também no campo das probabilidades, no âmbito de algo que ainda viria a acontecer. A problemática forma-conteúdo sinaliza, ao fim, de acordo com os teóricos ingleses Richard Freadman e Seumas Miller em Repensando a Teoria, para uma relação de aparente oposição que se sustenta, por sua vez, numa indeterminação flagrante. Não se pode precisar, por exemplo, a anterioridade ou a hierarquia de um conceito sobre outro. Além disso, ambos vêem “um excesso de componentes” para esta relação como inconsistência lógica e pragmática, incomensurabilidade e diferenças conceituais. Seja como for, quando um autor se excede na forma o resultado pode vir a ser a esterilização do texto, com uma inserção totalizante e exagerada do real. No sentido contrário, quando ele se revelar excessivamente intimista ou inspirado quanto ao conteúdo de sua obra, o seu texto pode ficar impossível de ser lido pelas numerosas divagações metafísicas, hermetismos desnecessários ou afrouxamentos expressivos. Qualquer escritor autêntico – seja ele poeta, crítico, ensaísta ou ficcionista – tende a ir buscar, dentro dos moldes particulares de sua própria concepção literária e de estilo, um equilíbrio entre estas partes que se complementam, entre esta velha e ainda não descartada dualidade forma-conteúdo. O que apenas o fará um autor mais eficaz e cuidadoso e tornará bem mais compreensível e preciso o texto que elabora e escreve.

In: Continente Multicultural, ano VI, nº 62, Fevereiro/2006, Recife-PE.

* Poeta, crítico literário e ensaísta, blog www.omundocircundande.blogspot.com

Um comentário:

  1. Aliado a tudo isso, um texto
    também deve ter magia.
    Seduzir o leitor e conduzí-lo
    a transpor fronteiras.
    Abraços

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