quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010




O coronel e a poeta

* Por Rubem Costa

Isonomia é uma figura jurídica que, a grosso modo, se define como a igualdade na desigualdade. Pois é essa imagem que se colhe da leitura do livro O Coronel e a Poeta, organizado por J.R. Guedes de Oliveira para homenagear a vida a dois de um casal cuja existência foi um magnífico exemplo de trabalho sociocultural em favor da cidade. Pettená e Arita. O verso e o reverso de um diploma de anseios e lutas. A dinâmica do fazer e a crítica do agir. O cabo e a lâmina de uma faca. O apoio para agir e o fio para cortar.

Em 1973, sob o título Recepção de Gala, o Correio Popular publicava reportagem de página inteira anunciando “a festa que o General Geraldo Knaack de Souza, Comandante da 11ª Brigada de Infantaria Blindada, na posição de presidente de honra do Círculo Militar de Campinas, amplamente coadjuvado pelo presidente dos circulistas, Tte. Cel. Rodolfo Pettená” promovera para as autoridades constituídas e personalidades de Campinas, com a finalidade de comemorar condignamente o “7 de Setembro”.

O acontecimento transformou-se num dos grandes eventos do ano graças à fidalguia dos anfitriões, escreveu então o repórter Jamil Abraão, que assinalou com ampla ilustração fotográfica a participação de destacadas figuras da sociedade e de altas autoridades representativas dos poderes públicos.

Ao lado do Comandante da Guarnição Militar, aparece o Vice-prefeito de Campinas, Otávio Ceccato, juntamente com outras personalidades ilustres, como o secretário municipal de Administração, Sérgio Castanho e Agostinho Toffoli Tavolaro, delegado da Fiesp-Ciesp.

Como diretor da Divisão Regional de Educação, eu também estive lá. Diria melhor, estive lá, como todos os presentes estiveram, naquela noite de “black-tie”, para presenciar uma festa de brasilidade que se desenvolvia com imenso brilho no palco de respeitáveis eventos sociais — o “Golden Room” do Círculo Militar.

Entidade que nasceu do sonho de um major, cresceu pelo trabalho sem descanso do tenente coronel e vicejou em ramaria ampla pelo entusiasmo do coronel — Pettená. Um pescador de sonhos que se pôs ao mar na persecução de seu destino: trabalhar. Pois ali, onde se desenrolou a festa, no magnífico conjunto arquitetônico e paisagístico, centro de atividades sociais e esportivas que tanto dignificam Campinas, se condensa a sua figura, pétrea na memória dos pósteros.

Saga que se expande do Círculo Militar para a crônica da Associação Atlética Ponte Preta, da qual foi dedicado presidente, e de onde, peregrino, transborda para os caminhos da Caverna do Diabo, cujo itinerário turístico foi por ele traçado. E mais! De lá, a partir dessa importante descoberta para a geografia do país, espraia sua edificante aventura até Peruíbe, onde foi vereador e Secretário de Turismo.

Superpondo-se à muralha dos quartéis, levou para a planície do mundo civil o seu ideário de humanidade. Foi um paisano com a farda de soldado que se casou ainda muito jovem com o avesso da disciplina dos quartéis, Arita Damasceno, uma professora que em pleno governo militar lhe fez o favor de arranjar homéricas dores de cabeça. Como testemunhei no tempo em que eu era diretor da Divisão Regional de Educação.

Era 1971. Esther Figueiredo Ferraz, então secretária estadual da Educação, programou para Campinas um seminário pedagógico que se propunha reunir, como reuniu, educadores dos oitenta e três municípios jurisdicionados à divisão do Ensino. Evento de projeção regional que, por sua amplitude, reuniu também autoridades civis e militares como convidados especiais.

Um instante histórico para o ensino na região. Estava organizando a pauta de recepção quando, assustado como um coelho perseguido, chegou-me ao gabinete um assessor que foi logo dizendo — a coisa vai ficar feia, olha quem vai falar em nome dos professores. Como democraticamente deixara a cargo dos docentes a indicação do seu porta-voz, li o nome e, lembrando-me de um sambinha de outros carnavais, limitei-me a observar placidamente ao auxiliar — é feio mas é bom, deixa quem quiser falar.

A jovem professora foi por mim incluída sem qualquer ressalva no programa. E falou. Dissertou para uma assembleia de mil pessoas, numa solenidade em que presente à mesa se encontrava o general comandante da guarnição militar. Na plateia o povo, enquanto, na rigidez das normas castrenses, dragões da cavalaria faziam a guarda de honra.

Sem rodeios, a galante mestra criticou a divisão de Ensino, verberou a secretaria de Educação, discorreu contra o governo do Estado, arrematando com uma vibrante peroração a favor de uma nação livre e democrática. Foi aí, ao finar o discurso, que a secretária da educação, voltando-se para mim, indagou: — quem é essa professorinha ousada? Respondi-lhe da maneira mais suave possível. É Arita, esposa do presidente do Círculo Militar, aquele major fardado sentado ali na primeira fila.

Se não me engano, um raio coriscou no salão. Mas, voltando ao discurso, lembro-me que, à medida que ela falava, cartesianamente remetia minhas reflexões ao sentido mágico dessa palavra imensa — liberdade. Termo dúctil da mais ampla expansão semântica. Em qualquer idioma — liberté; libertà, liberdad, liberty ou freiheit —, assume no interior do ser dimensões inimagináveis, por onde deslizam concepções flexíveis desde a grandeza da consciência até a mesquinhez do espírito escravo.

É impressionante como essa força encantada caminha no tempo e se expande no espaço. Sobe e desce ladeiras. Vai da águia, que se ergue em vôo amplo para descobrir nas fímbrias do horizonte a antevisão do infinito, ao tatu que, esfocinhando a terra, sonha com a faculdade de se esconder da luz.

Do alfa ao ômega, é a criatura que define o rumo dos seus anseios. Cabe ao ser a escolha — viver como pássaro entre as grades de uma gaiola ou traçar na coreografia das asas a dimensão de seu próprio destino. Quando ainda inexperiente professorinha, Arita, a poeta, decidiu e buscou nos píncaros da consciência o supremo direito do ser e ter — a liberdade de pensar e dizer.

A partir daí, ninguém mais foi capaz de segurá-la. Nem mesmo o coronel — o cabo da faca.

* Rubem Costa é escritor e membro da Academia Campinense de Letras



Um comentário:

  1. A liberdade de expressão, de
    ir e vir compartilhando pensamentos
    sem o medo da "faca".
    Abraços

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