segunda-feira, 14 de dezembro de 2009




Um rio de moda

* Por Mara Narciso

E
ntrei na exposição de moda pela saída. Queria vislumbrar de forma aleatória as roupas que homenageavam o Rio São Francisco agonizante. Pensei ver tecidos escurecidos e uma profusão de peixes mortos. Mas não, a moda está mais viva do que o rio. Muita cor e beleza numa diversidade de fontes e estilos que emociona. O passeio entre os vestidos e as bacias de sal, que representam o mar invadindo a foz do rio, exigia cuidado para não cair, mas a mensagem era fácil de compreender: até onde vai a nossa sanha destruidora? Afinal a integração nacional passa pelo leito não nupcial do rio, mas leito. Não é preciso contrair núpcias, mas naturalmente se casa com essa ideia preservacionista. Os manequins de metal nem de longe são humanos, mas pareciam gente em fila protestando contra a destruição do rio.

Cada uma das mais de quarenta vestimentas expostas causa-me um estado híbrido de angústia e admiração. Os tecidos, as cores, as formas, as texturas, os bordados, os adornos de rolotê, as golas bufantes, os sinos de pano, as assimetrias, e os desenhos de peixes e seus esqueletos, remetiam-me ao arquejante rio que nasce na Serra da Canastra e desemboca no Oceano Atlântico.

As roupas faziam um círculo duplo no centro do pátio do Montes Claros Shopping Center, próximas da fonte. De cada lado balcões repletos de tesouros, de objetos, de formas, de imagens, de livros e documentos, que foram fontes de pesquisa para as criações de Ronaldo Fraga, um estilista que faz moda como quem pinta uma tela, como quem faz escultura, como quem projeta arquitetura. Então cede a sua paixão e nos convida a refletir sobre em qual mundo queremos viver.

Em círculos suspensos feito aquários secos e cheios de sal, peixes com a boca para cima, em busca do ar da superfície poderiam ser facilmente pescados com as mãos, e nas costas traziam suas mensagens de alerta: não nos deixem desaparecer!

Ao lado dos manequins, um mapa na parede branca é o caminho seguido por Ronaldo Fraga através do Velho Chico, com as carrancas, o gaiola Benjamin Guimarães e a variedade cultural. No começo do roteiro peixes estilizados têm cruzes no lugar de olhos. São a agonia do nosso rio. E adiante, no lugar da entrada, cortinas de amplos tecidos com motivos pluviais cobrem todo o vão do espaço. Na entrada um painel mostra um texto poético do estilista, e algumas letras invertidas dizem que a diversidade da nossa cultura é pura riqueza. É mais um show de poesia engajada: por favor, salvem o nosso rio!

De longe, noutro canto estão dependuradas dezenas de peneiras misturadas com bastidores mesclando mais uma vez arte e tradição, objetos utilitários e criação.

Na parte de trás da mostra uma TV aponta o desfile dessas mesmas roupas no São Paulo Fashion Week. Ver as peças nos corpos humanos e belos causa impacto de telas reluzentes. O vídeo mostra o lado chique da arte visual. Depois do desfile, as modelos voltam à passarela no escuro, e o negror ambiente é o luto contra o estado terminal do rio. Muito aplaudido, o autor finaliza entrando em cena para mais aplausos.

E então, já em casa vejo na TV uma entrevista de Ronaldo Fraga cedida à Felicidade Tupinambá no Canal 20 da Master Cabo. É como fico sabendo das etapas da construção dessa obra humana inspirada na natureza por nós destruída: o Rio São Francisco.

A cidade de Montes Claros, palco dessa exposição de moda está a 160 km do rio, mas respira todo o seu cheiro, sente todo o seu gosto e lamenta toda a sua dor. Aqui, a arte, a moda e o brilhantismo de Ronaldo Fraga contribuem para o resgate da vida do nosso rio, e da nossa própria vida. A salvação do planeta começa perto de casa.

* Médica, acadêmica do sétimo período de Jornalismo e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”.

7 comentários:

  1. Agonia dos rios, agonia da Terra...
    Enquanto isso em algum lugar da Europa
    ilustres discutem o destino do Planeta...
    A cena que descreve dos peixes em agonia
    tentando respirar me angustia.
    Adorei Mara.
    beijos

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  2. Há décadas, a alta costura nada tinha a dizer, muito menos a mostrar, mas parece que busca, agora, novos e mais conseqüentes caminhos, com o empréstimo de conceitos da arquitetura e das artes plásticas; quando não, da ideologia. Gostei do texto e de todo o seu desenvolvimento. Parabéns, Mara!

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  3. Maras

    Parabéns pelo texto, por sua sensibilidade ao descrever a exposição. Foi como se eu estivesse lá. E o rio São Francisco é uma das minhas paixões, e atualmente minha grande preocupação. Será que essa expoisção virá a SP?
    Beijos

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  4. Núbia, Daniel e Risomar, o Rio São Francisco emociona e a exposição foi marcante.
    Obrigada pelo carinho.

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  5. Excelente trabalho do estilista.
    Texto brilhante o seu, Mara.
    Escreveu muito bem.
    Imagino o quanto ficou " tocada" diante do trabalho de Ronaldo Fraga.
    Fiquei com vontade de ver a exposição.
    Trabalho criativo e sensível.
    Seu e do estilista.

    Salvem o " Planeta" ! Salvem o " Velho Chico" !

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  6. Interessante essa ideia da moda engajada, trazendo reflexão, denúncia e pedido de socorro. O mundinho fútil, por vezes, torna-se útil. Bele texto, amiga Mara.

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