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Liedo do povo quer Casa da Memória Popular
* Por Marco Albertim
Com 84 anos, Liedo Maranhão continua sendo um colecionador de frases. Atendendo ao telefonema deste repórter, depois de ter aceito o pedido de entrevista, disse, na despedida: “Araruta... araruta...!” Para quem não se lembra, era o mote, rimando com “puta”, na referência à mãe de quem faltasse ao compromisso assumido. Há 50 anos! O tempo em que Liedo vem juntando o seu acervo. São 4 mil livros incluindo folhetos de literatura de cordel, receitas de comidas populares, comentários sobre filmes, artistas e programas de rádios, da época de ouro do rádio; há ainda um prelo de madeira, com mais de quarenta anos, conservado, que o folclorista já não lembra de quem obteve.
Ele quer um local onde tudo seja catalogado, preservado com temperatura própria, “de preferência nas imediações do Mercado São José”, onde viveu a infância e conheceu prostitutas, camelôs, engraxates, fotógrafos de lambe-lambe; e o folheteiro Leonardo Rodrigues que, condenado a quatro anos de cadeia, disse aos colegas de cela que fora sentenciado a 20 anos; para não ser morto. À noite, improvisava versos, cantando-os. Solto, os colegas disseram: “Léo! Mate um cabra-safado e volte! Você é amigo...”
Liedo tem o nome ligado à família de usineiros, mas o pai fora apenas “guarda-livros da Usina Matary.” Formou-se em odontologia na Espanha. Em Madrid, soube que o escritor Washington Irving pedira ao prefeito de Granada para morar no Palácio de Alhambra, abandonado, em ruínas. O americano morreu, o palácio foi restaurado, tem uma placa com o nome do escritor. Liedo, de volta, inspirado no episódio, passou a conviver com o povo marginal da Praça do Mercado São José. Frequentara o Prado, em Madrid, a convite do pintor e cineasta Gerson Tavares. Impressionou-se com as cores dos quadros ali expostos, tornou-se pintor.
Foi recrutado para o Partido Comunista pela cientista Naíde Teodósio; era o responsável pela arrecadação das finanças do Partido, entregava-as a David Capistrano. Lembra-se de que os camaradas, quando se referiam à coragem de Naíde, diziam: “Tem muita gente aqui que tem vontade de vestir a saia de Naíde...” No governo de Miguel Arraes, integrou, chefiando a equipe de dentistas, o SAI – Serviço de Assistência Itinerante; “a convite do sertanista Noel Nutels.” Confessa que, então sofrendo de hemorróidas, recusava-se a fazer o asseio com papel higiênico. “Eu comprava uma garrafa de Coca-cola, agitava-a e punha o jato no ânus. Aliviava-me com isso...” Visitou Bianô Teodósio, marido de Naíde, na Casa de Detenção. Magro, a comoção se refletia em Liedo, no estômago. Vomitou. Bianô aconselhou-o a não visitá-lo mais. Na Sertã, reduto de comunistas antes e depois do golpe militar de 64, encontrou-se com os amigos. Queria notícias dos outros, de quem fora preso. Disse que, por conta das hemorróidas, pouco saíra de casa. Um deles, indignado, jogou-lhe no rosto:
- Tem vergonha não, Liedo!? Todo mundo preso e você preocupado com uma hemorróida!
O folclorista já escreveu treze livros, histórias populares em forma de crônica; na mesma linguagem do povo com quem conviveu. Narra que, convidado por uma prostituta para tomar cerveja, disse: “Não bebo, não fumo, não jogo e não gosto de mulher! O que eu gosto mesmo é de criar passarinho...” Prosaica, a mulher respondeu: “Que chic!”
Liedo Maranhão é aposentado como odontólogo do serviço público, ganha quatro mil reais por mês. Divide o dinheiro com o filho, desempregado. Mora numa casa própria, Bairro Novo, Olinda. Na rua todos conhecem “Liedo do povo”, o dentista de poucos dentes. “Quero um lugar para criar a Casa da Memória Popular, onde tudo que recolhi de sebistas, de folheteiros, possa ser usado pelo mesmo povo...”
* Jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem dois livros de contos e um romance.
* Por Marco Albertim
Com 84 anos, Liedo Maranhão continua sendo um colecionador de frases. Atendendo ao telefonema deste repórter, depois de ter aceito o pedido de entrevista, disse, na despedida: “Araruta... araruta...!” Para quem não se lembra, era o mote, rimando com “puta”, na referência à mãe de quem faltasse ao compromisso assumido. Há 50 anos! O tempo em que Liedo vem juntando o seu acervo. São 4 mil livros incluindo folhetos de literatura de cordel, receitas de comidas populares, comentários sobre filmes, artistas e programas de rádios, da época de ouro do rádio; há ainda um prelo de madeira, com mais de quarenta anos, conservado, que o folclorista já não lembra de quem obteve.
Ele quer um local onde tudo seja catalogado, preservado com temperatura própria, “de preferência nas imediações do Mercado São José”, onde viveu a infância e conheceu prostitutas, camelôs, engraxates, fotógrafos de lambe-lambe; e o folheteiro Leonardo Rodrigues que, condenado a quatro anos de cadeia, disse aos colegas de cela que fora sentenciado a 20 anos; para não ser morto. À noite, improvisava versos, cantando-os. Solto, os colegas disseram: “Léo! Mate um cabra-safado e volte! Você é amigo...”
Liedo tem o nome ligado à família de usineiros, mas o pai fora apenas “guarda-livros da Usina Matary.” Formou-se em odontologia na Espanha. Em Madrid, soube que o escritor Washington Irving pedira ao prefeito de Granada para morar no Palácio de Alhambra, abandonado, em ruínas. O americano morreu, o palácio foi restaurado, tem uma placa com o nome do escritor. Liedo, de volta, inspirado no episódio, passou a conviver com o povo marginal da Praça do Mercado São José. Frequentara o Prado, em Madrid, a convite do pintor e cineasta Gerson Tavares. Impressionou-se com as cores dos quadros ali expostos, tornou-se pintor.
Foi recrutado para o Partido Comunista pela cientista Naíde Teodósio; era o responsável pela arrecadação das finanças do Partido, entregava-as a David Capistrano. Lembra-se de que os camaradas, quando se referiam à coragem de Naíde, diziam: “Tem muita gente aqui que tem vontade de vestir a saia de Naíde...” No governo de Miguel Arraes, integrou, chefiando a equipe de dentistas, o SAI – Serviço de Assistência Itinerante; “a convite do sertanista Noel Nutels.” Confessa que, então sofrendo de hemorróidas, recusava-se a fazer o asseio com papel higiênico. “Eu comprava uma garrafa de Coca-cola, agitava-a e punha o jato no ânus. Aliviava-me com isso...” Visitou Bianô Teodósio, marido de Naíde, na Casa de Detenção. Magro, a comoção se refletia em Liedo, no estômago. Vomitou. Bianô aconselhou-o a não visitá-lo mais. Na Sertã, reduto de comunistas antes e depois do golpe militar de 64, encontrou-se com os amigos. Queria notícias dos outros, de quem fora preso. Disse que, por conta das hemorróidas, pouco saíra de casa. Um deles, indignado, jogou-lhe no rosto:
- Tem vergonha não, Liedo!? Todo mundo preso e você preocupado com uma hemorróida!
O folclorista já escreveu treze livros, histórias populares em forma de crônica; na mesma linguagem do povo com quem conviveu. Narra que, convidado por uma prostituta para tomar cerveja, disse: “Não bebo, não fumo, não jogo e não gosto de mulher! O que eu gosto mesmo é de criar passarinho...” Prosaica, a mulher respondeu: “Que chic!”
Liedo Maranhão é aposentado como odontólogo do serviço público, ganha quatro mil reais por mês. Divide o dinheiro com o filho, desempregado. Mora numa casa própria, Bairro Novo, Olinda. Na rua todos conhecem “Liedo do povo”, o dentista de poucos dentes. “Quero um lugar para criar a Casa da Memória Popular, onde tudo que recolhi de sebistas, de folheteiros, possa ser usado pelo mesmo povo...”
* Jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem dois livros de contos e um romance.
Parabéns pelo texto!
ResponderExcluirAbsorvi cada linha e sinto-me até próxima
desse homem que por natureza e merecimento
já faz parte da memória desse povo.
Abraços
Prazer em conhecer Liedo Maranhão. O que não deve ter de histórias esse homem! O perfil traçado ficou bem interessante.
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