segunda-feira, 10 de agosto de 2009




Por uma só noite mágica

* Por Eduardo Murta

Meio copo de gim, talco aplicado demoradamente às mãos, e um suspiro de quem tracejava entre esperança e estertor. Três bêbados. Quatro putas sem pedigree. Um vendedor de loterias. E, pleno século XXI, a radiolinha a pilha ciscando agulha no compacto que o anunciava. No instante em que rufavam os tambores, ele adentrava o palco improvisado. Em mímica própria de quem saudava casas cheias.

Deixava o sorriso armado, em pretensa euforia, e cuidava de se apresentar: Mestre Andorinha, o Carpinteiro de Ilusões!!! As luzes de pista espocando verde e vermelho em seu rosto cuidavam de emprestar ao show uma aura de melancolia típica aos fins de domingo. A gentalha que o acompanhava patinava nos olhares, lembrando tartarugas sonolentas. E, número após número, herdaria nenhuma palma. Um dos presentes dormia.

Talvez fosse tempo para se retirar definitivamente de campo. Ele e sua cartola de aluguel, seu fraque recauchutado. E seus truques para lá de vencidos. A pomba. O lenço, a carta de baralho... Nem ele mesmo se agüentava. Daí ter variado tanto em plateias. Até que minguassem por inteiro. Pulara do circo às festas infantis, destas para convenções, daquelas para confraternizações de fim de ano, dali para hospitais, presídios, e, por fim, dar com o que soava a fim de linha: bares de zona.

Naquela noite, assentou a varinha à quina do balcão, deixou que rolasse até enfurnar-se na escuridão do recinto. E, como nunca havia visto em sua existência, o grupo testemunhou um quase octogenário à beira de se definhar em lágrimas. O corpo esquelético em dízimas periódicas de pranto, e um soluço arfante, comum só aos que namoram a morte. Causava dó. Um a um, a clientela foi se aproximando, num misto de compaixão e curiosidade mórbida.

Era homem transbordando em solidão. Das legítimas. A palavra fracassado ecoando-lhe, feito fosse fino punhal vazando a têmpora. Pudesse, se faria desaparecer num estalar de dedos. Mas, não. Tinha Jorge, o canário, avencas à varandinha, sede diária, e Brutus, o cágado, todos sob sua guarda e conta. Já se recompunha, sozinho ao centro e, súbito, deu com o bilhete ornado em letra inconfundivelmente feminina, postado junto ao copo do qual jamais se separava: “Minha vida está em suas mãos”.

Recolheu o choro de pronto, olhou à volta. Tentava flagrar origem. Nenhum sinal. O lenço encroado terminou de secar-lhe o nariz. Com ele corrigiu também a borda dos olhos. Àquela altura, cansaço e frustração atropelando, melhor era tomar caminho de casa. A que se recompusesse. Guardou as tralhas, lançou colônia doce sobre a roupa fedendo a álcool e cigarro e se foi. Pensou como um menino naquele bilhete. Dormiu sorrindo. Estava decidido a voltar no dia seguinte.

Andorinha se acendeu, então, sobre o palco, ao firmar suas primeiras impressões. Se exibindo, público ralo, notou os movimentos em Cassandra, decana do amor de aluguel por aquelas bandas. Vislumbrou deleite em suas reações. Ela isolada no anonimato da oitava mesa à esquerda, sob penumbra, a pilastra secretando seus humores.

Ao final, o mágico deu voltas, margeou, até arranchar-se por ali. O sorriso a denunciando. Ele reforçou convicções ao lhe expor o bilhete. Ela desconcertada, o mágico agora em êxtase, mirando romance. A dama quase aposentada de prostíbulo o desarmou, porém. Resumiu que não buscava casos, porque de corpos enjoara. Se dera a tantos. Queria era beber doses e mais doses de ilusão, dela alimentar-se, a ponto de crer que a vida estava para além do prazer pago, dos ensaios de orgasmo.

Andorinha pediu um gim duplo. Rasgou o papel, um mero despiste na trama de conquista. E disse a ela que, no fundo, se cansara do intangível. Virara devoto da carne. Do gozo. De beijos na boca. Ansiava tocar pele, urgentemente acreditar que a vida estava para além do ilusório. Que poderia ser mais, bem mais, que um simples truque barato. Se real, se miragem, contam por lá que experimentaram noite singular. Com toques de pura mágica.

* Jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. É secretário de Redação do jornal Hoje em Dia, diário de Belo Horizonte. Já teve passagens também pelos jornais Diário de Minas e Estado de Minas, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas do Hoje em Dia (www.hojeemdia.com.br), onde publica às quartas-feiras.

3 comentários:

  1. Grande momento, grande história a ensinar que tempo sempre há, basta que lhe aproveitemos as oportunidades. Enquanto houver necessidades, o movimento não descansará - entendi, caro Murta. Parabéns por mais este tento!

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  2. Belíssimo! O fim melancólico de pessoas que se veem sem nenhum valor, pode somar um no outro e encontrar muito, vivendo coisas que nem desconfiavam poder sentir mais. Exaltando que, nas suas palavras, caro Eduardo Murta, o trivial fica muito além do variado: vira romance.

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  3. É o jogo de espelhos em que cada um se vê, Daniel e Mara, um pouco da chave desses encontros. Ilusão ou carne - sirvamo-nos todos. Abraços

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