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Nós, na Ilha
* Por André Falavigna
E no Continente. Até porque Vini e Jéssica não são tão abastados assim e nos hospedaram no Continente mesmo, quase em frente à Praia do Cagão. Vocês nem imaginam o quanto fico feliz em poder escrever “cagão” assim, sem remorsos e sem possibilidade de repreensões por parte de José Paulo Lanyi, irmão de nossa anfitriã – e portanto cunhado de nosso anfitrião – e, também, nosso companheiro de viagem. E quem éramos nós? Ora, ninguém menos do que eu, a Jovem Esposa e o teledramaturgo, diretor, ator, herdeiro dos magnatas do mercado imobiliário do Cambuci, Aclimação e adjacências, gourmet falhado, ex-Literário e pioneiro – pioneiríssimo, aliás – produtor paulistano Leandro Barbieri (pronuncia-se Barbiêri, por favor).
Tudo começou quando JP (agora somos íntimos, afinal, e cabe aqui o JP) nos convidou para passar o último réveillon na casa de sua irmã Jéssica, na luxuriante Florianópolis. Aceitei imediatamente, sem sequer consultar JE (esta já íntima há quase uma década, então fico à vontade para o JE) que, mais tarde, aprovou meu aceite sem a menor hesitação. Somente depois de confirmar é que soube que gozaria, ainda, da companhia de Barbieri, com quem até então travara pouco, mas profícuo contato. Nada mau. Bom time para viajar. Viajamos.
Fomos de ônibus, na manhã do dia 26, logo após o Natal. Doze horas até o destino, viação honesta, ronquei pouco, li alguma coisa. Lanyi roncou a valer, constrangeu Barbieri. Ou foi o contrário, já não me lembro – estamos em julho, a coisa foi há mais de seis meses. De qualquer modo, JE tem tudo anotado e, se alguém tiver dúvidas, é só me procurar depois. Esclareço quase qualquer questão. Adelante.
Quem nos recebeu foi Vini. JP nos falou de Vini durante boa parte da viagem (enquanto não esteve roncando, note-se), e sempre muito bem. Tem o cunhado na mais alta conta, coisa rara hoje em dia. E, para o caso, coisa justa também. Vini foi o cicerone perfeito, além de se revelar um verdadeiro Jarbas – íamos pra lá e pra cá às custas dele e de sua imensa camionete equipada com um GPS completamente drogado. Diversas vezes, vi que o aparelhinho arremessava o carro ao alto mar, ou sugeria que atravessássemos prédios, montanhas e abismos. Mas Vini interpretava-o e sempre chegamos onde queríamos.
Em poucos minutos, estávamos instalados e apresentados à Jéssica. Eu e JE recebemos um quarto só para nós dois. JP, irmão dileto, idem. Barbieri foi largado na sala, não sei bem por quê. Talvez porque seja ele quem ronque muito, não estou certo. Como eu disse, isso tudo faz tempo e muitos pontos embaralharam-se em minha cabeça. Não importa.
Na manhã seguinte, sem nenhuma procrastinação, instalamos-nos em frente ao mar da Ilha, à cerveja da Ilha, às caipirinhas da Ilha e ao inesgotável estoque de camarão que somente a – repito – luxuriante Florianópolis é capaz de oferecer. Jéssica, a princípio, pareceu-me meio desconfortável com algo, talvez até arredia. Depois, descobrimos todos que se tratava apenas de um certo – como direi? – garbo rústico totalmente administrável. Enfim, tudo correu bem: nadamos bastante, bebemos mais ainda, comemos outro tanto. JE disse coisas desconexas, perdeu chinelos, encontrou-os novamente e, na comemoração, capotou sobre a areia, pernas para o alto, pedalantes contra o poente glorioso.
Os dias se sucederam entre carteado pueril (não houve pôquer, o que corrigirei na próxima oportunidade), camarão, álcool, sol, céu, camarão, sal, gargalhadas e algum camarão a mais, só que na moranga e com requeijão. Num dado momento, descobrimos que Barbieri, pioneiríssimo, dorme de camisola. Por favor, contenham-se: não posso dizer mais nada. Apenas isto: dorme de camisola, e daí?
Em determinada noite, Vini conseguiu-nos ingressos para uma espécie de aquecimento pré-réveillon. Àquela altura, já formávamos a equipe perfeita para as férias. Entrosamento que veio a calhar porque, na tal festança, a coisa ficou séria. Aquilo é a própria esbórnia. Pude confirmar as suspeitas que a praia, as ruas e os restaurantes da – nunca é demais lembrar – luxuriante Florianópolis apenas ensejavam: a quantidade de mulheres as mais gostosas que existe por lá é digna de profundas – profundas, senhores – abordagens científicas. Profundas e científicas, senhores. Era tanta gostosa que JE liberou-me para olhar para o que bem entendesse: nenhuma regra poderia evitar que algum olhar acabasse cruzando com alguma gostosa, em algum lugar, durante algum tempo. É impossível dizer se em Florianópolis há mais camarões ou gostosas. Não importa. O que importa é que havia bom uísque e champanhe bom, de graça e para todos, que houve show de Fernanda Abreu, que havia comida também boa e gratuita e que o resultado disso tudo foi que acabei com a Luxuriante Esposa comemorando a Jovem Florianópolis ao som dos roncos de não sei bem quem.
Quando voltávamos dessas aventuras, iam sempre Vini e Barbieri, na frente da camionete, bêbados e animando o ambiente com atitudes estranhas, enquanto JP, Jéssica, JE – esta no meu colo – e eu nos espremíamos no banco de trás, igualmente bêbados e animados, mas menos estranhos. Foi numa ocasião assim que Jéssica defendeu-nos da imprudência de outro motorista com unhas, dentes e um solitário – mas troante – “vai tomar no seu cu” dirigido àquele facínora motorizado, certamente exemplar clássico desses tipos que, bêbados e cantantes, saem pelas estradas com o carro tomado pelo dobro da capacidade permitida.
Fomos aos fogos junto à Hercílio Luz, na virada. Ocasião especialmente marcante para mim, por conta de um incidente menor. Aconteceu que, depois de uns cinco minutos de foguetório contínuo, a multidão esfuziante e aplaudindo muito, baixou sobre a orla aquele interregno de puro silêncio que sempre ronda as grandes reuniões. Precisamente nesse momento solene – é quase sempre assim, comigo – se pôde ouvir minha voz singela alcançando muito mais metros do que seu dono desejaria:
_ Era só essa merda? No Rio é muito melhor, hein?
Imediatamente, senti pesar o olhar de seis, sete mil aborígenes sobre mim. Felizmente eram, na sua imensa maioria, as maiores gostosas. Fui salvo pela pujança verdadeiramente glútea da bela Florianópolis. Uma coisa louca.
Para terminar, visitamos Nei Duclós. É, visitamos Nei Duclós. Foi difícil chegar, mas visitamos Nei Duclós. Nei mora numa casa bonita, situada numa passagem secreta para uma dimensão secreta de um plano escondido. Fica nos Ingleses. Nunca foi tão difícil chegar a nenhum lugar, em nenhuma época. O GPS de Vini contorcia-se em lancinante abstinência ruidosa – o troço chegou a apitar. Creio que, em algum momento, fomos multados. Moisés teria achado a parte dele pinto e seria grato por mais um ou dois anos no deserto. Ícaro enfiaria as asas entre as pernas. Ulisses preferiria comer os porquinhos. Nós, não. Nós chegamos.
Felizmente, compensou. Comemos salgadinhos, bebemos até espumante e demos algum trabalho. Falamos de muitas coisas. Eu xinguei Telê Santana. JP xingou todo o mundo, até Telê Santana – ele não queria, mas eu praticamente o forcei a terminar o que havia começado. Nei nos contou histórias que eu nunca, nunca vou contar pra vocês – que é pra manter esses ares misteriosos de quem visitou o escritor misterioso em sua toca, e saiu de lá ileso. Quando fomos embora, lembro-me bem: ventava biblicamente. O que não me impediu de manter o caminho decorado. Para futura referência.
Florianópolis, Vini, Jéssica e Nei: aguardem-nos.
Nós voltaremos. E, dessa vez, não haverá misericórdia.
(*) André Falavigna é escritor, tendo publicado dezenas de contos e crônicas (sobretudo futebolísticas) na Web. Possui um blog pessoal, http://ofalavigna.blog.uol.com.br, no qual lança, periodicamente, capítulos de um romance. Colabora com diversas publicações eletrônicas.
* Por André Falavigna
E no Continente. Até porque Vini e Jéssica não são tão abastados assim e nos hospedaram no Continente mesmo, quase em frente à Praia do Cagão. Vocês nem imaginam o quanto fico feliz em poder escrever “cagão” assim, sem remorsos e sem possibilidade de repreensões por parte de José Paulo Lanyi, irmão de nossa anfitriã – e portanto cunhado de nosso anfitrião – e, também, nosso companheiro de viagem. E quem éramos nós? Ora, ninguém menos do que eu, a Jovem Esposa e o teledramaturgo, diretor, ator, herdeiro dos magnatas do mercado imobiliário do Cambuci, Aclimação e adjacências, gourmet falhado, ex-Literário e pioneiro – pioneiríssimo, aliás – produtor paulistano Leandro Barbieri (pronuncia-se Barbiêri, por favor).
Tudo começou quando JP (agora somos íntimos, afinal, e cabe aqui o JP) nos convidou para passar o último réveillon na casa de sua irmã Jéssica, na luxuriante Florianópolis. Aceitei imediatamente, sem sequer consultar JE (esta já íntima há quase uma década, então fico à vontade para o JE) que, mais tarde, aprovou meu aceite sem a menor hesitação. Somente depois de confirmar é que soube que gozaria, ainda, da companhia de Barbieri, com quem até então travara pouco, mas profícuo contato. Nada mau. Bom time para viajar. Viajamos.
Fomos de ônibus, na manhã do dia 26, logo após o Natal. Doze horas até o destino, viação honesta, ronquei pouco, li alguma coisa. Lanyi roncou a valer, constrangeu Barbieri. Ou foi o contrário, já não me lembro – estamos em julho, a coisa foi há mais de seis meses. De qualquer modo, JE tem tudo anotado e, se alguém tiver dúvidas, é só me procurar depois. Esclareço quase qualquer questão. Adelante.
Quem nos recebeu foi Vini. JP nos falou de Vini durante boa parte da viagem (enquanto não esteve roncando, note-se), e sempre muito bem. Tem o cunhado na mais alta conta, coisa rara hoje em dia. E, para o caso, coisa justa também. Vini foi o cicerone perfeito, além de se revelar um verdadeiro Jarbas – íamos pra lá e pra cá às custas dele e de sua imensa camionete equipada com um GPS completamente drogado. Diversas vezes, vi que o aparelhinho arremessava o carro ao alto mar, ou sugeria que atravessássemos prédios, montanhas e abismos. Mas Vini interpretava-o e sempre chegamos onde queríamos.
Em poucos minutos, estávamos instalados e apresentados à Jéssica. Eu e JE recebemos um quarto só para nós dois. JP, irmão dileto, idem. Barbieri foi largado na sala, não sei bem por quê. Talvez porque seja ele quem ronque muito, não estou certo. Como eu disse, isso tudo faz tempo e muitos pontos embaralharam-se em minha cabeça. Não importa.
Na manhã seguinte, sem nenhuma procrastinação, instalamos-nos em frente ao mar da Ilha, à cerveja da Ilha, às caipirinhas da Ilha e ao inesgotável estoque de camarão que somente a – repito – luxuriante Florianópolis é capaz de oferecer. Jéssica, a princípio, pareceu-me meio desconfortável com algo, talvez até arredia. Depois, descobrimos todos que se tratava apenas de um certo – como direi? – garbo rústico totalmente administrável. Enfim, tudo correu bem: nadamos bastante, bebemos mais ainda, comemos outro tanto. JE disse coisas desconexas, perdeu chinelos, encontrou-os novamente e, na comemoração, capotou sobre a areia, pernas para o alto, pedalantes contra o poente glorioso.
Os dias se sucederam entre carteado pueril (não houve pôquer, o que corrigirei na próxima oportunidade), camarão, álcool, sol, céu, camarão, sal, gargalhadas e algum camarão a mais, só que na moranga e com requeijão. Num dado momento, descobrimos que Barbieri, pioneiríssimo, dorme de camisola. Por favor, contenham-se: não posso dizer mais nada. Apenas isto: dorme de camisola, e daí?
Em determinada noite, Vini conseguiu-nos ingressos para uma espécie de aquecimento pré-réveillon. Àquela altura, já formávamos a equipe perfeita para as férias. Entrosamento que veio a calhar porque, na tal festança, a coisa ficou séria. Aquilo é a própria esbórnia. Pude confirmar as suspeitas que a praia, as ruas e os restaurantes da – nunca é demais lembrar – luxuriante Florianópolis apenas ensejavam: a quantidade de mulheres as mais gostosas que existe por lá é digna de profundas – profundas, senhores – abordagens científicas. Profundas e científicas, senhores. Era tanta gostosa que JE liberou-me para olhar para o que bem entendesse: nenhuma regra poderia evitar que algum olhar acabasse cruzando com alguma gostosa, em algum lugar, durante algum tempo. É impossível dizer se em Florianópolis há mais camarões ou gostosas. Não importa. O que importa é que havia bom uísque e champanhe bom, de graça e para todos, que houve show de Fernanda Abreu, que havia comida também boa e gratuita e que o resultado disso tudo foi que acabei com a Luxuriante Esposa comemorando a Jovem Florianópolis ao som dos roncos de não sei bem quem.
Quando voltávamos dessas aventuras, iam sempre Vini e Barbieri, na frente da camionete, bêbados e animando o ambiente com atitudes estranhas, enquanto JP, Jéssica, JE – esta no meu colo – e eu nos espremíamos no banco de trás, igualmente bêbados e animados, mas menos estranhos. Foi numa ocasião assim que Jéssica defendeu-nos da imprudência de outro motorista com unhas, dentes e um solitário – mas troante – “vai tomar no seu cu” dirigido àquele facínora motorizado, certamente exemplar clássico desses tipos que, bêbados e cantantes, saem pelas estradas com o carro tomado pelo dobro da capacidade permitida.
Fomos aos fogos junto à Hercílio Luz, na virada. Ocasião especialmente marcante para mim, por conta de um incidente menor. Aconteceu que, depois de uns cinco minutos de foguetório contínuo, a multidão esfuziante e aplaudindo muito, baixou sobre a orla aquele interregno de puro silêncio que sempre ronda as grandes reuniões. Precisamente nesse momento solene – é quase sempre assim, comigo – se pôde ouvir minha voz singela alcançando muito mais metros do que seu dono desejaria:
_ Era só essa merda? No Rio é muito melhor, hein?
Imediatamente, senti pesar o olhar de seis, sete mil aborígenes sobre mim. Felizmente eram, na sua imensa maioria, as maiores gostosas. Fui salvo pela pujança verdadeiramente glútea da bela Florianópolis. Uma coisa louca.
Para terminar, visitamos Nei Duclós. É, visitamos Nei Duclós. Foi difícil chegar, mas visitamos Nei Duclós. Nei mora numa casa bonita, situada numa passagem secreta para uma dimensão secreta de um plano escondido. Fica nos Ingleses. Nunca foi tão difícil chegar a nenhum lugar, em nenhuma época. O GPS de Vini contorcia-se em lancinante abstinência ruidosa – o troço chegou a apitar. Creio que, em algum momento, fomos multados. Moisés teria achado a parte dele pinto e seria grato por mais um ou dois anos no deserto. Ícaro enfiaria as asas entre as pernas. Ulisses preferiria comer os porquinhos. Nós, não. Nós chegamos.
Felizmente, compensou. Comemos salgadinhos, bebemos até espumante e demos algum trabalho. Falamos de muitas coisas. Eu xinguei Telê Santana. JP xingou todo o mundo, até Telê Santana – ele não queria, mas eu praticamente o forcei a terminar o que havia começado. Nei nos contou histórias que eu nunca, nunca vou contar pra vocês – que é pra manter esses ares misteriosos de quem visitou o escritor misterioso em sua toca, e saiu de lá ileso. Quando fomos embora, lembro-me bem: ventava biblicamente. O que não me impediu de manter o caminho decorado. Para futura referência.
Florianópolis, Vini, Jéssica e Nei: aguardem-nos.
Nós voltaremos. E, dessa vez, não haverá misericórdia.
(*) André Falavigna é escritor, tendo publicado dezenas de contos e crônicas (sobretudo futebolísticas) na Web. Possui um blog pessoal, http://ofalavigna.blog.uol.com.br, no qual lança, periodicamente, capítulos de um romance. Colabora com diversas publicações eletrônicas.
Pessoal, eu quis dizer "aborígenes". Perdoe-me a falha.
ResponderExcluirAndré, passaram-se seis meses. Fomos cercados por novos prédios, com muitas sacadas. Minha casa, que era misteriosa, agora está no mapa do google, filmada por muitos olhos. Brinca e poderás me ver postando daí mesmo do Cambuci. O que não é nenhuma vantagem, pois meus mistérios prosaicos não recheiam nem um conto, quanto mais um romance. Vi que te comportaste neste primeiro capítulo. Nem quero ler o segundo. Tenho certeza que vais contar tudo. Já peço de antemão: misericórdia, André. Juro que vou falar bem do Palmeiras.
ResponderExcluirPronto, André, está retificado. Agora, as possíveis falhas são consertadas a qualquer momento, tão logo sejam detectadas. É uma das milhares de vantagens deste novo espaço. Parabéns pelo texto. Como sempre, você arrasou!!!
ResponderExcluirDiversos momentos de graça e de riso. Nem imagino de qual embornal saem tantas boas e fortes. A troca da adjetivação da esposa e de Florianópolis foi hilária, assim como a profusão de glúteos na cidade. Ainda destaco as histórias de Nei Duclós que jamais saberemos. Não demora e, acredito, aparecerão por aqui. Falavigna é diversão líquida e sólida.
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