quarta-feira, 1 de julho de 2009




Conspiração no Guadalupe

(Romance)

* Por Marco Albertim

Capítulo IV - Não seria mau dormir pagã de remorsos

Ninguém se arriscou a falar primeiro. De um lado, Gertrude, Caetano e Xisto; de outro, Maújo, acomodado numa máquina de costura; aquietou-se no primeiro móvel que encontrara. O cumprimento com Gertrude fora mudo. Ela abriu a porta, seguiu para a sala de jantar, sabendo que ele a seguiria. Fora assim nos primeiros dias de arranjo com ele. Seguiam pelo corredor, percorriam a sala, para, no quarto dos fundos, se atracarem como dois ursos em lua-de-mel. Depois, já conhecendo os desvãos do corpo de cada um, ali mesmo, com a porta de través, mordiscavam-se. Com o tempo, ele teve que esperar que ela fumasse o repulsivo cigarro de palha.

Maújo, com esforço, olhava para os três. Xisto, humilhado, mais vexado que Maújo, distinguiu desígnios de um tribunal até na disposição dos móveis.

Caetano remexeu a cabeça, olhou de frente, de viés, para baixo, até soltar a palavra em direção a Maújo:
- Xisto alega que Maújo fez com ele o que ele, Xisto, não faria a um inimigo de classe.
- Não planejei tomar Chica de Xisto. Fomos atraídos um pelo outro. Ela não o ama, nunca o amou. Tinha-lhe amizade e afeto, nada mais.
- Houve falta de respeito ao camarada. É fácil entender.

Xisto, poltrão, calado; sequer um cigarro acendera. Gertrude, austera, deixou escapar um riso ameaçador, indício de que Maújo seria incriminado.
- Respeito que Xisto teria a um inimigo de classe! É concessão ou retórica? Prefiro acreditar que é retórica.
- O desrespeito foi comigo!

Gertrude resolveu falar. A mão direita aberta, os dedos colados em diagonal, golpeando o ar na pose marcial. Juntou o gesto com as palavras, exigiu autocrítica .
- Devo-lhe maturidade, Gertrude, e alguma experiência. Nossa relação já estava no fim. Se eu fizer autocrítica, será uma meia autocrítica.
- Você nunca me disse que nossa relação estava no fim.
- Não queria lhe magoar. Ainda tinha um pouco de esperança de restabelecer a disposição para continuar.
- Devia ter me dito!
- Seria inevitável eu lhe dizer. Chica precipitou os fatos.
- O que tem Chica com isso? Ela apareceu por último.
- Não vou detalhar o começo de minha relação com Chica numa reunião do Partido. Aqui somos todos da mesma base... Mas a individualidade de cada um é compartimentada! Ou não é?

A reunião não esgotou o assunto, dissolveu-se; combinação muda para evitar fissuras. Sob nervosas baforadas do cigarro de Gertrude.

Da ladeira da Misericórdia ouviam-se os batuques dos bombos. Maújo desceu feito um devoto. Pisando nas pedras, cada uma era uma lápide de sepulcro com a data de quando fora recrutado por Gertrude para ser militante; e com a data daquele dia, quando fizera o último experimento da doutrina. Não tinha saudade de Gertrude, tinha remorso. Fora o único a se retirar, dando as costas ao retiro que fora seu.

Caetano, caeté, filho de caetés de Cajazeiras, desculto de pais e avós, agora animoso no cerco a Gertrude. Não se negariam amparo, ele e Gertrude. Negro de feições primitivas, ela o trataria com habilidade de mestiça domada.

A Xisto restava carpir a própria sorte na quarentena, ou chorá-la no arremedo de dialética a que estava acostumado.

Maújo nunca soube que, após a reunião, Gertrude passara mal; reclamara de cólica, tontura. Levantara-se e o vestido, atrás, tinha um círculo cheio de sangue. A hemorragia deixou-a pálida, com manchas escuras na rigidez do rosto. Caetano levou-a ao Pronto Socorro. Depois da curetagem, trouxe-a de volta no dia seguinte. Abortou com um mês de gravidez. Com a mesma autoridade com que exigira autocrítica de Maújo, insistiu para Caetano não dizer ao ex-parelho e autor da prenhez. Xisto saíra antes. Com a palavra no penhor, Caetano guardou o silêncio; vira a secreção da bolsa de Gertrude empapar-lhe o vestido. Agora, cuidaria de recompor a esperança dela noutra vida, com ou sem gravidez.

O propósito de Gertrude era dizer a Maújo na noite do Estrela, da rumba que deveria ser dançada com ela. “Droga! Une petite réunion.” Resultara num encontro cindido, na novidade não compartilhada. “Droga! Pior que a puta-que-pariu é ser a puta-que-não-pariu!”
- Quero chorar, Caetano. Deixe-me chorar na sua presença. Quero chorar do mesmo modo como expulsei um filho das entranhas.
- Ninguém precisa pedir licença para chorar. Você ainda não tinha um filho na barriga; era um embrião.
- Superestimei a capacidade de ser feliz. Perdi um sonho.
- Perdeu um sonho, mas não a capacidade de dormir. Quem dorme volta a sonhar. Relaxe.
- Agora vivo um pesadelo. Se eu conseguir fechar os olhos, não sei se vou acordar. Até que não seria mau... dormir pagã de remorsos.
- Os pagãos por opção não têm remorsos. São infelizes porque não lhes foi ensinado o ofício do amor. Não são infelizes por acaso, são condenados. Não é o seu caso e você sabe disso. Durma. Voltamos a conversar.

Dormiu para supurar o útero, abjurar o desgosto. Caetano teria que esconjurar demônios.

(Continua na próxima semana)

* Jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem dois livros de contos e um romance.

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