segunda-feira, 8 de junho de 2009




Fome ou amor?

* Por Daniel Santos

Chegou com cara de fome e pediu um prato de comida em troca de qualquer serviço. Antes da previsível negativa, empurrou o portão, tomou a vassoura das mãos da mulher e repetiu “qualquer serviço, ‘viu dona’”.

Varria com gestos bruscos, rosto crispado de urgências e narinas infladas de infalível olfato: ela lhe preparava alguma coisa, intuiu. Entrou pela cozinha e deu cabo do sanduíche com voracidade de assustar.

Mas ele queria mais e pediu outro serviço. Intimidada, a sós com um desconhecido dentro da própria casa, a mulher sentiu medo da fome dele e, voz sumida, garganta seca, disse que o almoço saía logo, logo.

Panelas no fogo máximo, e ela agora mais aflita, porque o tal avançava pelos aposentos, à procura de tarefas que lhe rendessem comida ou dinheiro. Era homem e tinha de se sentir homem. Ou era ninguém?

Esbarraram-se no quarto: ela aturdida, ele só iminências. E suas mãos desocupadas encontraram-na. Tomou-a, beijou-a, sem saber se o movia a fome ou o amor. Estacou, então, aturdido. Ela, agora, iminências.

* Jornalista carioca. Trabalhou como repórter e redator nas sucursais de "O Estado de São Paulo" e da "Folha de São Paulo", no Rio de Janeiro, além de "O Globo". Publicou "A filha imperfeita" (poesia, 1995, Editora Arte de Ler) e "Pássaros da mesma gaiola" (contos, 2002, Editora Bruxedo). Com o romance "Ma negresse", ganhou da Biblioteca Nacional uma bolsa para obras em fase de conclusão, em 2001.

6 comentários:

  1. Quem tem fome de amor é carente da alma !
    Quantos andam por aí a sofrer deste mal ?
    Daniel deu-nos um exemplo.

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  2. Ela era só caridade, e ele era só apetite. Aconteceu o surrado ditado " juntou a fome com a vontade de comer". E assim assistimos a um magnífico banquete.

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  3. Às vezes fico pensando como você consegue dizer tanto com tão poucas palavras, Daniel. Como consegue...! Parabéns! Abraço, meu amigo.

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  4. Bacana, Daniel, esse fast food do prazer.

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  5. Fome ou amor, fome e amor, fome de amor, amor pela fome, tudo isso se junta nesse intrincado jogo de desejos e satisfações. É o bicho homem que Daniel mostra sem elucidar, só lançando interrogações às quais ninguém dará resposta. E teremos sempre fome voraz de textos assim. Belo e intrigante, meu amigo!

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  6. Muito da alma humana em poucas e bem escritas linhas. Show,Daniel! Parabéns e abraços.

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