sexta-feira, 10 de abril de 2009

A salvação pela literatura


*Urariano Mota


Nos tempos em que pensei ser professor, sempre tentei dizer a jovens estudantes que a literatura era fundamental na vida de todos. Mas quase nunca tive sucesso nessas arremetidas rumo a seus espíritos. Minhas palavras pareciam não fecundar. Primeiro porque a literatura ministrada a eles, em outras aulas, destruía todo o gozo de viver. Os mestres, profissionais ou burocratas, ensinavam-lhes a anti, a literatura para antas, com listas de nomes, datas e resumos de obras, nada mais. Em segundo lugar eu não fecundava porque o valor do sentimento, o sentido de uma rosa, o cântico de amor ou o desajuste de pessoas em uma sociedade corrupta nada significava para as tarefas mais práticas, que se impunham.

- O que eu ganho com isso, professor?

E com isso, o jovem, quando de classe média, queria me dizer, que carro irei comprar com a leitura de Baudelaire? Que roupas, que tênis, que gatas irei conquistar com essa conversa mole de Machado de Assis? Então eu sorria, para não lhes morder. A riqueza do mundo das páginas dos escritores, a gratidão que eu tinha para quem me fizera homem eu sabia. Mas não achava o que dizer nessas horas quando o petardo de uma frase de Joaquim Nabuco ganhava a zombaria de toda a gente. Eu sorria e me punha a gaguejar coisas estapafúrdias do gênero os poetas são os poetas, Cervantes era Cervantes. E me calava, e calava a lembrança dos sofrimentos e humilhações em vida do homem Cervantes que dignificou a espécie.

- O que eu ganho com isso, professor?

Quando essa pergunta me era feita por jovens da periferia, excluídos, isso me ofendia muito mais que a pergunta do jovem classe média. Aos de antes eu respondia com uma oposição quase absoluta, porque não me via em suas condições e rostos. Mas a estes periféricos, não. Eu passava a ser atingido nos meus domínios, na minha gente, porque eu olhava os seus rostos e via o meu, no tempo em que fui tão perdido e carente quanto qualquer um deles. Então eu não sorria. Aquilo, do meu semelhante, me acendia um fogo, um álcool vigoroso, e eu lhes falava do valor da literatura com exemplos vivos, vivíssimos, da minha própria experiência. (Há um relato sobre isso em “Histórias para adolescentes pobres”.) Então eu vencia. Então a literatura vencia. Mas já não tinha o nome de literatura. Tinha o nome de outra coisa, algo como histórias reais de miseráveis que têm a cara da gente. Mas tudo bem, eu me dizia, que se dane o nome, vence a literatura.

No entanto, agora refletindo enquanto escrevo, descubro que ainda assim havia uma grandiosa derrota nessa vitória de extremo recurso. Eu, o professor, falhava como professor. Quero dizer, eu não acendia a chama em seus corações como um fogo de pentecostes, com o calor de que a literatura é um valor permanente, alto e tão alto que por vezes parece substituir a própria vida. Quero dizer, para ser mais preciso: eu não fazia aqueles adolescentes atirarem-se aos livros, que seriam uma casa, um céu, um amigo, uma amiga, um amor, a namorada. Os jovens se quedavam por momentos diante do relato e depois mudavam de assunto, para outra coisa mais urgente. Afinal, jovens precisam comer, vestir, beber, e pegarem em namoradas mais concretas que um soneto de Camões.

O professor falhava porque prática, grosseira e opressora era a onipresença do mundo das necessidades. A literatura não se inscrevia como uma prática nesse mundo. E prática aqui em dois significados: como um hábito e como uma intervenção útil, pragmática. A literatura se opunha ao mundo prático. Na visão de todos, ela era como um luxo, um caviar... mas me expresso mal, porque o luxo é desejado, o caviar é querido. Era muito pior: a literatura roubava o tempo que deveria estar empregado em outra coisa. Que coisa? Qualquer coisa, coisa qualquer. Os passatempos mais estúpidos seriam mais necessários que essa inominável que furtava energias, dinheiro e ações dignas de serem vividas.

- Em vez de estar lendo, você devia...

Então eu não mais sorria. No mais íntimo de mim eu me julgava, eu me sabia certo como um neurótico. Tudo era o contrário do que eu pensava, mas eu estava certo. Certo como um neurótico silencioso. Pois que louco eu seria a proclamar as venturas da literatura quando todas e quaisquer coisas eram mais venturosas?

Esta semana uma jovem míope, tímida, com 19 anos, deu uma substância e um conforto a essa qualquer coisa, coisa qualquer que para nada serve, que furta o tempo e deixa os seus cultores neuróticos, malucos ou esquizofrênicos. Na altura em que a mocinha atravessava um momento difícil, prestou concurso para uma bolsa de estudo na Alemanha. Pois esta semana saiu o resultado: ela foi um dos três jovens escolhidos. E por isso viaja, e por um ano terá bolsa líquida e livre de 600 euros, e mais universidade, casa e alimentação. Mas como, eu perguntei a ela, como você conseguiu, se não é uma falante de alemão? Ao que ela, em seu espírito verdadeiro, me respondeu:

- Eu fui salva pela literatura. Em minha carta contei como Goethe entrou em minha vida.

Ah, sabem? Hoje é domingo, faz sol, tudo é luz. O neurótico aqui dedica à jovem esta crônica.

* Escritor e jornalista

3 comentários:

  1. O materialismo nos torna interesseiros: deve haver alguma compensação ao tempo dispendido na leitura; do contrário, como tal gasto se justificaria? E há, também, a urgência de hoje, essa ansiedade, como se nascêssemos não mais com pecado original, mas com déficit de prazo, permanentemente atrasados. Ou assim tentam nos convencer. Feliz de quem ouve mestre Urariano e descobre a fortuna de cultivar o espírito. Esse se eleva e ganha bolsa-de-estudos, enquanto o professor se escarrapacha gostosamente ao sol. Vingado! Parabéns pela didática e pela lição que torna a literatura ainda mais radiante.

    ResponderExcluir
  2. Como comentei no seu blog, preciso deixar de me desculpar por não ter lido alguns autores consagrados, e permitir que apenas os livros mais vendidos e os livros acadêmicos preencham o meu tempo. Preguiça não tenho. Vamos a eles!

    ResponderExcluir