segunda-feira, 13 de abril de 2009




Que jamais anoiteça em mim

* Por Eduardo Murta

O casarão avarandado, generoso nas janelas em arco – oito de frente, quatro às laterais e ao fundo – resume bem mais que moldura à paisagem da fazenda. Tom de palha, as bordas em azul, aquilo era um charme só. O verde à volta acolhendo, se converteria em fenômeno, um pouco por suas linhas arquitetônicas coloniais e um tanto pela figura que abrigava: Mané Tic-Tac.

Aquilo começara como mero apelido e mais tarde ganharia status de sobrenome. Lavrado em cartório. Mirem ele ainda aos 9 anos, recebendo do bisavô sua primeira relíquia. Um cuco numa riqueza barroca de entalhes. Mimoso. Cairia em amor por prendas assim. Aos 12, os pais já contavam 33 variedades de relógios na coleção do menino – de pulso, bolso, parede, pêndulo...

Cada moeda da ajuda nas vaquejadas, na colheita do café, no pilão de milho, depositava na caixinha de sapatos. Até completar o bastante a que trouxesse uma peça nova para casa. Foi também sendo lembrado em presentes e, súbito, nomeado relojoeiro-mor do lugar. Mestre na delicada carpintaria de artesão do tempo. Era exatamente como se julgava.

A ponto de ele mesmo, sem consultar os ponteiros, saber horas e minutos com precisão suíça. De espantar. No vilarejo, passaram a tratá-lo como espécie de mago, guardião de alquimias. Era comum gente de longe embarcando doentes, se aborboletando à porta da pequena loja. Ele ajeitava pacientemente os óculos, sorrindo, e negando pela enésima vez ao dia o dom da cura.

Dizia ter uma só prescrição a receitar: que vivessem sem pressa. Aos 19, quanto todos os hormônios vinham revestidos em brasa, ele era o avesso daquilo. Pulava da cama às 6. Girava pelo curral e, caneca em leite morno, o sabor de tetas vivo, estirava os pés no riacho. Lia, bocejava, adormecia, e o curso d´água ia tratando de lustrar-lhe o espírito.
Lá vinha um Mané renovado a cada manhã. Ia sereno, até naquela quarta-feira pressentir a aproximação. Já sabia, no momento em que ela girou a maçaneta e pousou os pés na soleira. Beirava fim de tarde. Tinha olhos densamente negros, cílios como que desenhados e a voz num aveludado que o descompassava. Experimentou taquicardia leve, das sãs.

Gaguejou. Que voltasse amanhã para buscar o relojinho.

Retornou. Se chamava Adélia. As visitas se seguiram rigorosamente no mesmo horário – de 17h15 às 17h45. Nem um minuto a mais, nem um a menos. Veio paixão. Nasceu namoro. Despontou a dúvida. Que maldição era aquela impondo limites rígidos, a que ela tardasse e instantaneamente se recolhesse? A um relojoeiro soava como provação. Desacreditou do relato de que nascera condenada a se confinar àquele espaço-tempo. Deixasse de conversa insana e revelasse a verdade.

Foi que a reteve, entrelaçando-se a seus dedos. Iria colocar à prova o que dizia. E viu a mulher se desmaterializar por inteiro, feito fosse fuligem do desejo. Chorou copiosamente noite adentro e, circulando pelo casarão, se meteu entre os 517 relógios, insone, até vislumbrar saída. Se embebedou na alquimia que enxergavam nele, e converteu querer em fenômeno. E ali no sobradão, desde sempre, o dia se cumpre entre o entardecer e o ensaio do pôr-do-sol. Num ciclo em que os ponteiros de Adélia e os de Mané delicadamente se alinham. A que sobre eles jamais caia a noite.

* Jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. É secretário de Redação do jornal Hoje em Dia, diário de Belo Horizonte. Já teve passagens também pelos jornais Diário de Minas e Estado de Minas, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas do Hoje em Dia (www.hojeemdia.com.br), onde publica às quartas-feiras.

2 comentários:

  1. uhm ... Adélia, ilíada, idílio ... quantas aliterações esse nome sugere! No cotidiano gozoso de quem soube aprender com ancestrais pespontar o tempo sem franzi-lo nem esgarçá-lo, as horas escoam sem o aflito imperativo dos prazos e enredam os enamorados no amoroso remanso de um cotidiano que só a sabedoria dos simples sem pretensão alcança. Ventura e fortuna - é disso que vc entende,caro Murta. E entende como ninguém! Parabéns pela crônica sem sobressaltos neste mundo veloz, tresloucado.

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  2. Linda história de amor. Bela viagem no tempo.

    "...o dia se cumpre entre o entardecer e o ensaio do pôr-do-sol...." Belo !

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