Recordação do futuro
O título destas “mal-traçadas” linhas
envolve, logo de cara, uma contradição, para dizer o mínimo. Afinal, podemos
nos recordar de algo que não aconteceu e pode, jamais, acontecer?
Objetivamente, não, embora haja quem acredite que sim, no caso, os profetas.
Sei lá! Sou um tanto cético quanto a essa questão de “profecia”. Mas... não vou
meter a mão nessa cumbuca, repleta de marimbondos, até para não me machucar.
Quem sou eu para contestar crenças alheias?!! Vamos, todavia, ao caso.
A memória, se bem-cultivada, tende a se
transformar em uma fonte quase inesgotável de satisfações. Caso contrário, se
não tivermos essa cautela, acaba por se tornar num feroz adversário, num
implacável verdugo, num perverso carrasco, a nos esfregar, sem dó e nem
piedade, no nariz, nossos momentos de dor, de aflição, de fracassos, de
carência e solidão, que conviria esquecer.
Por exemplo, quando visitamos um lugar
particularmente belo, em companhia de alguém que amamos, sua beleza parece
multiplicar-se por mil e as lembranças que suscita, principalmente se neles
vivemos momentos de encantamento e afeto, permanecem vivas enquanto vivermos.
Se um dia voltarmos a esses lugares, junto com essa mesma pessoa que nos fascina
e cativa, sempre descobriremos novas belezas, como se houvessem mudado para
melhor, mesmo que tenham se tornado decadentes.
Melhor ainda será quando se tratar de
reencontro com a amada, após eventual separação. Será um delírio, magia, um
prazer indescritível! O poeta finlandês, Risto Rasa, escreve, nestes versos do
poema minimalista intitulado “Espero que voltes”, como entende que seja essa
experiência:
“Vamos andar por todos os lugares
que conhecemos tão bem
e eles vão parecer-me quase novos
outra vez”.
Só o amor tem essa faculdade de
renovação. É inútil, porém, qualquer tentativa para se regressar ao passado.
Ainda não inventaram a máquina do tempo que nos leve para frente ou para trás
nos anos, meses ou dias (e sequer em míseros segundos) e nos permita reviver,
fisicamente, o que não soubemos valorizar quando aconteceu.
Só podemos fazer esse regresso, assim
mesmo de maneira truncada, através da memória (frágil e seletiva). Daí a
necessidade de vivermos, sempre, intensamente. E em vez de termos que nos contentar
com alegrias do passado, o mais sábio é criar, a cada dia, novas e profundas
satisfações. Bebamos do cálice da vida até a derradeira gota. Mas sempre com
prazer e felicidade.
Temos a tendência natural de devotar
desprezo a tudo o que não compreendemos. O tempo é uma dessas coisas
incompreensíveis. A atitude correta, porém, seria a busca incansável da
compreensão, que é o caminho da verdadeira sabedoria. Agimos, via de regra,
como a raposa em relação às uvas, da famosa fábula de La Fontaine. Ou seja,
tentamos, tentamos e tentamos alcançar os frutos e, quando não conseguimos, em
vez de continuarmos tentando, até que tenhamos
êxito, quase sempre olhamos para trás e dizemos, com desprezo,
entredentes: “estão verdes”. Na verdade, não estão.
Temos possibilidade de chegar ao
entendimento de qualquer coisa, idéia ou princípio, por mais complexos e
nebulosos que sejam, se nos empenharmos de verdade para isso. O que devemos ter é respeito pelo
incompreensível. E, claro, o máximo empenho na busca da compreensão.
Jean Cocteau afirmou, certa feita, em
entrevista: “O poeta recorda-se do futuro”. Claro que se trata, apenas, de bela
metáfora. Afinal – e nem seria necessário ressaltar – é impossível recordar o
que ainda sequer aconteceu, como enfatizei no início destas considerações. Essa
“recordação”, na verdade, seria o que os poetas intuem, com base em
experiências (pessoais e/ou alheias) do que é provável, ou pelo menos possível,
de nos ocorrer, face a determinadas
circunstâncias.
E qual a autoridade de Jean Cocteau
para tão peremptória afirmação? Para quem não sabe, informo que, além de
consagrado diretor de cinema – qual cinéfilo não conhece os vários filmes que
ele dirigiu, ou produziu, ou escreveu roteiros, ou participou de alguma forma,
como “O testamento de Orfeu”, “A águia de duas cabeças, “A bela e o monstro”,
“Orfeu” e “Lês parents terribles”, entre outros? – foi, também, um vitorioso
escritor, mais especificamente, poeta. Tanto que foi eleito, em 1955, para a
seletíssima Academia Francesa de Letras. Destacou-se, com George Auric, Louis
Durey, Arthur Honneger, Darius Milhaud e Francis Poulenc, do famoso “Grupo dos
Seis”.
Convenhamos, não são apenas os poetas
que se preocupam com o futuro. Não há quem não se ocupe, de uma forma ou de outra,
dele. Essa preocupação, desde que moderada, é saudável e desejável.
Principalmente se formos poetas e se soubermos avaliar seu potencial de
desgaste e decadência, sem nos desesperarmos. Nunca duvide: ele nos desgasta e,
um dia, até nos mata!
Contudo, é preciso ter em mente que o
futuro não passa de abstração, de mero vir-a-ser. Pode se concretizar
rapidamente, transformando-se, em infinitésimos de segundo, no presente, como
pode nunca acontecer, em decorrência da nossa mortalidade. É, como se vê, uma
perspectiva aterradora, posto que real.
Sua matéria-prima, portanto, são os
sonhos, as esperanças, as intuições, as projeções da mente e da imaginação. A
realidade é o momento presente, tão curtíssimo, mais rápido do que um piscar de
olhos, e o passado, caudaloso e extenso. Morris West destaca, no romance “O
Navegante”: “Vive-se um minuto depois do outro, vive-se uma hora, vive-se um
dia. O futuro é o que se sonha. A realidade é o momento presente apenas, cada
batida do coração”.
Sonhemos, intensa e profusamente, sem
limites ou restrições. Mas nos preparemos para quando, ou se, o futuro se fizer
presente, com suas surpresas (boas e/ou más) e possibilidades. E, quem sabe, em
um desses golpes inesperados do acaso, consigamos “antever” um ou outro acontecimento,
com todos os detalhes, sem faltar nenhum. Impossível? Não sei!!! Provavelmente,
sim. Caso acertemos na mosca, todavia, será a única maneira de recordarmos o
que ainda não aconteceu. Ou seja, o futuro.
Boa
leitura.
O
Editor.,
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