
Andino, o distraído
* Por Lêda Selma
Andino, caminhoneiro bonachão, feio mais que doença de pele, sempre acompanhado do amigo e protetor São Cristóvão, rodava por essas terras de ninguém, a esgoelar as músicas tocadas no rádio. Semanas e semanas na estrada, escoltado pela mesma solidão.
Numa dessas viagens, fugindo de seu antigo hábito de só pegar na estrada mulher aparelhada de qualidades visuais, deu carona a um senhor de meia idade, tipo bronco, de aparência serena, apesar de um pouco maltratada. De imediato, percebeu tratar-se de um homem econômico nas palavras e na alegria. Mas, pensando no percurso longo a ser vencido, resolveu tirar proveito da caridade cometida e, de pronto, liberou a língua para o pontapé inicial das palavras; e desamarrou uma conversinha insossa.
Assim, enquanto a viagem comia os quilômetros, os dois homens continuavam a triturar frases, bisbilhotados por uma tímida e pubescente lua. E, lá pelas tantas, já com o sono a lhes pisar os olhos, a cidade-destino do caroneiro apontou luminosa, como se preparada para festa. Com um encorpado aceno de adeus, o favorecido agradeceu a cortesia de Andino e tomou seu rumo.
Alguns metros, à frente, o caminhoneiro passou a mão pelo bolso da calça e sentiu a ausência da carteira. Às carreiras, saiu atrás do desconhecido. Alcançado, o homem assustou-se com a puxada, de supetão, do companheiro de percurso.
– Tu é um sujeito lascado, ô cabra, se não me devolver, sem piscanejar, a carteira que tu me roubou. Vou te dar uma pisa tão grande, mesmo depois de devolvida a carteira, que nunca mais tu vai esquecer a lição – berrou Andino, com a mão esquerda acintosamente estendida e a outra, ameaçadora.
– O que é isso, amigo, tá me estranhando? Não entendo sua ira, nem sei que história é essa de carteira roubada. Mesmo chateado, lhe permito me revistar pra resolver sua dúvida.
– Dúvida, infeliz? Certeza, seu rato de estrada! – esbravejou o caminhoneiro, enquanto violava os bolsos do acusado, à procura da desaparecida que, de repente, apareceu.
– Malandro dos infernos, então, é assim que tu me agradece? Rouba minha carteira e ainda te faz de vítima, descarado? Só não te entrego pra polícia porque não quero mais atraso na viagem, senão, tu ia ver com quantos ferros se faz uma grade de cadeia.
– Pelo amor de Deus, moço, ganhei essa carteira de um filho, no último Natal. Vamos procurar a do amigo, deve estar na boleia do caminhão, caída embaixo do banco.
– Além de ladrão, cínico. Vai-te embora, cabra! – esbravejou Andino, dando as costas ao estupefato suspeito.
Humilhado, o caroneiro afastou-se, prometendo, com a altivez da consciência em paz, que as coisas não ficariam assim. Iria ao delegado.
A sirene policial, logo, alcançou Andino.
– Boa-noite, sente-se, por favor! – disse o delegado.
– Pelo visto, pra mim, nem tão boa – retrucou Andino.
– O senhor foi acusado de roubar uma carteira.
– Fui o quê?! Tenha paciência, doutor! Eu, sim, tive a carteira roubada, mas já recuperei, por isso não dei queixa. São Cristóvão é testemunha (falando no senhor, que cochilão, hem?! Plantonista que se preze não dorme em serviço!) – pensou baixinho para não desmoralizar o amigo santo.
– Quem é Honestino Severo? – indagou o delegado, ao ler os documentos retirados da tal carteira.
– Sou eu, delegado!
– Honestino...? – desesperou-se o caminhoneiro.
– O que tem a dizer, senhor..
– Andino dos Santos. A dizer? Bem... estou desentendido, doutor.
– E o senhor Honestino?
– Recuperei a honra e a carteira. Retiro a queixa. Apesar de tudo, devo um favor a esse homem.
De volta ao lar, dias depois, ainda confuso, aporrinhado, com a saudade dos filhos e da mulher a lhe judiar o coração, Andino foi recebido com festa pela família também saudosa. E, após um xodozinho da patroa, recebeu um carinhoso pito:
– Homem de Deus, como é que tu viaja e não leva a carteira? Achei a esquecida bem aqui, olhe, em cima do banco. Eta homem danado de distraído este meu pau de arara, oxe!
• Poetisa e cronista, licenciada em Letras Vernáculas, imortal da Academia Goiana de Letras, baiana de Urandi, autora de “Das sendas travessia”,” Erro Médico”, “A dor da gente”,” Pois é filho”!” Fuligens do sonho”,” Migrações das Horas”,” Nem te conto”, “À deriva” e “Hum sei não”,! entre outros.
* Por Lêda Selma
Andino, caminhoneiro bonachão, feio mais que doença de pele, sempre acompanhado do amigo e protetor São Cristóvão, rodava por essas terras de ninguém, a esgoelar as músicas tocadas no rádio. Semanas e semanas na estrada, escoltado pela mesma solidão.
Numa dessas viagens, fugindo de seu antigo hábito de só pegar na estrada mulher aparelhada de qualidades visuais, deu carona a um senhor de meia idade, tipo bronco, de aparência serena, apesar de um pouco maltratada. De imediato, percebeu tratar-se de um homem econômico nas palavras e na alegria. Mas, pensando no percurso longo a ser vencido, resolveu tirar proveito da caridade cometida e, de pronto, liberou a língua para o pontapé inicial das palavras; e desamarrou uma conversinha insossa.
Assim, enquanto a viagem comia os quilômetros, os dois homens continuavam a triturar frases, bisbilhotados por uma tímida e pubescente lua. E, lá pelas tantas, já com o sono a lhes pisar os olhos, a cidade-destino do caroneiro apontou luminosa, como se preparada para festa. Com um encorpado aceno de adeus, o favorecido agradeceu a cortesia de Andino e tomou seu rumo.
Alguns metros, à frente, o caminhoneiro passou a mão pelo bolso da calça e sentiu a ausência da carteira. Às carreiras, saiu atrás do desconhecido. Alcançado, o homem assustou-se com a puxada, de supetão, do companheiro de percurso.
– Tu é um sujeito lascado, ô cabra, se não me devolver, sem piscanejar, a carteira que tu me roubou. Vou te dar uma pisa tão grande, mesmo depois de devolvida a carteira, que nunca mais tu vai esquecer a lição – berrou Andino, com a mão esquerda acintosamente estendida e a outra, ameaçadora.
– O que é isso, amigo, tá me estranhando? Não entendo sua ira, nem sei que história é essa de carteira roubada. Mesmo chateado, lhe permito me revistar pra resolver sua dúvida.
– Dúvida, infeliz? Certeza, seu rato de estrada! – esbravejou o caminhoneiro, enquanto violava os bolsos do acusado, à procura da desaparecida que, de repente, apareceu.
– Malandro dos infernos, então, é assim que tu me agradece? Rouba minha carteira e ainda te faz de vítima, descarado? Só não te entrego pra polícia porque não quero mais atraso na viagem, senão, tu ia ver com quantos ferros se faz uma grade de cadeia.
– Pelo amor de Deus, moço, ganhei essa carteira de um filho, no último Natal. Vamos procurar a do amigo, deve estar na boleia do caminhão, caída embaixo do banco.
– Além de ladrão, cínico. Vai-te embora, cabra! – esbravejou Andino, dando as costas ao estupefato suspeito.
Humilhado, o caroneiro afastou-se, prometendo, com a altivez da consciência em paz, que as coisas não ficariam assim. Iria ao delegado.
A sirene policial, logo, alcançou Andino.
– Boa-noite, sente-se, por favor! – disse o delegado.
– Pelo visto, pra mim, nem tão boa – retrucou Andino.
– O senhor foi acusado de roubar uma carteira.
– Fui o quê?! Tenha paciência, doutor! Eu, sim, tive a carteira roubada, mas já recuperei, por isso não dei queixa. São Cristóvão é testemunha (falando no senhor, que cochilão, hem?! Plantonista que se preze não dorme em serviço!) – pensou baixinho para não desmoralizar o amigo santo.
– Quem é Honestino Severo? – indagou o delegado, ao ler os documentos retirados da tal carteira.
– Sou eu, delegado!
– Honestino...? – desesperou-se o caminhoneiro.
– O que tem a dizer, senhor..
– Andino dos Santos. A dizer? Bem... estou desentendido, doutor.
– E o senhor Honestino?
– Recuperei a honra e a carteira. Retiro a queixa. Apesar de tudo, devo um favor a esse homem.
De volta ao lar, dias depois, ainda confuso, aporrinhado, com a saudade dos filhos e da mulher a lhe judiar o coração, Andino foi recebido com festa pela família também saudosa. E, após um xodozinho da patroa, recebeu um carinhoso pito:
– Homem de Deus, como é que tu viaja e não leva a carteira? Achei a esquecida bem aqui, olhe, em cima do banco. Eta homem danado de distraído este meu pau de arara, oxe!
• Poetisa e cronista, licenciada em Letras Vernáculas, imortal da Academia Goiana de Letras, baiana de Urandi, autora de “Das sendas travessia”,” Erro Médico”, “A dor da gente”,” Pois é filho”!” Fuligens do sonho”,” Migrações das Horas”,” Nem te conto”, “À deriva” e “Hum sei não”,! entre outros.
O distraído Andino não leu a crônica de Evelyne:"Pronta?" Com certeza não teria acontecido isso! "... Eta homem danado de distraído...oxe!", rsrs
ResponderExcluirGostei, poetamiga!
Beijos
Conheço uma pessoa assim, só não perde a cabeça
ResponderExcluirpor estar presa ao tronco.
Ótimo texto.
Abraços
Esses nomes, Andino e Honestino Severo, dão ainda mais graça e vivacidade ao acontecido. É improvável, mas não impossível, e a injustiça continua sendo um dos grandes erros humanos.
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