

Exílio de zoólogo
* Por Marcelo Sguassábia
Eu queria lhe contar das brigas que não ando tendo com ninguém mais, por não ter mais ninguém ao lado com quem implicar de forma assídua e enriquecedora, como devem ser as Implicações de verdade, com “I” maiúsculo.
Nem tente dimensionar o quanto é gratificante essa opção que fiz de conviver com os pinguins e dedicar-me com afinco à minha variada e já até esquecida biblioteca itinerante. Pois é, eu que vivia correndo atrás do rabo, assumo o almejado posto de rato de livros, vocação que sufoquei por longas décadas. Tempo agora não me falta para, entre um içar de velas e uma ancoragem num cais de gelo, devorar de orelha a orelha “Os mecanismos de defesa imunológica do macaco-prego”, em edição revista e atualizada, “Focas não voam porque não têm asas”, “O pêlo do hamster do vizinho é sempre mais liso que o nosso (digo, do nosso hamster)” e outros tantos volumes preciosos da moderna zoologia capixaba.
Não obstante tão fenomenal conteúdo a fazer-me prazerosa companhia, fica um vazio que busquei e do qual andava mesmo muito precisado. E digo que esse vazio inclui (se é que é possível o vazio conter alguma coisa) a ausência de cigarras de dia, de grilos à noite e até mesmo das quase inaudíveis pegadas de um suposto abominável homem das neves – que alguns juram vagar por essas redondezas muito abaixo de zero.
Mas deixemos um pouco de lado o reino dos insetos e dos seres de existência duvidosa. O fato é que estar aqui, no seio branco da madrasta Antártida, é “marolinha”, como diz o presidente que larguei aí com você e sua turma, no país dos Simonais que submergem e vêm à tona conforme os caprichos da mídia. Difícil mesmo vai ser quando acabarem os tocos de vela e as poucas folhas de papel pardo que restam na improvisada escrivaninha da embarcação. Aí não poderei mais lhe escrever, mesmo sabendo remota a possibilidade de vir a receber esses garranchos, já que muito provavelmente o derradeiro dos 17 pombos-correio que trouxe comigo não aguentará a jornada até a Terra de Santa Cruz. E ainda que chegue não terá fôlego para trazer a resposta, o que torna esta narrativa um enfadonho monólogo por escrito.
Você, amiga íntima dos meus desafetos, sempre me teve na conta de sujeito de raciocínio um tanto quanto ornitorríntico, de acordo com suas próprias palavras. Saiba que me é impossível atinar com a razão dessa blasfêmia. Exceção se faça, contudo, ao meu vício de imitar gansos cansados, coisa da época em que nos implicávamos, e que de fato poderia sugerir um distúrbio neurológico latente a quem não me conhecesse suficientemente bem. Sempre primei por deixar transparecer uma imagem de sujeito simples e dócil no trato, tão fácil de lidar quanto um lhama da Cordilheira dos Andes. E disso todos os dálmatas do quarteirão eram fidedignas testemunhas. Mas, tudo bem, seja ou não feita justiça à minha pessoa, não estou aqui por sua causa e nem lhe peço satisfações de qualquer ordem. Fique aí ao calor dos trópicos, abusando dos decotes e arrastando no seu cio todas as espécies da sua raça. De minha parte, enquanto houver alguma condição de sobrevivência, vou ficando por aqui, entre os pinguins.
* Redator publicitário há mais de 20 anos, cronista de várias revistas eletrônicas, entre as quais a “Paradoxo”
* Por Marcelo Sguassábia
Eu queria lhe contar das brigas que não ando tendo com ninguém mais, por não ter mais ninguém ao lado com quem implicar de forma assídua e enriquecedora, como devem ser as Implicações de verdade, com “I” maiúsculo.
Nem tente dimensionar o quanto é gratificante essa opção que fiz de conviver com os pinguins e dedicar-me com afinco à minha variada e já até esquecida biblioteca itinerante. Pois é, eu que vivia correndo atrás do rabo, assumo o almejado posto de rato de livros, vocação que sufoquei por longas décadas. Tempo agora não me falta para, entre um içar de velas e uma ancoragem num cais de gelo, devorar de orelha a orelha “Os mecanismos de defesa imunológica do macaco-prego”, em edição revista e atualizada, “Focas não voam porque não têm asas”, “O pêlo do hamster do vizinho é sempre mais liso que o nosso (digo, do nosso hamster)” e outros tantos volumes preciosos da moderna zoologia capixaba.
Não obstante tão fenomenal conteúdo a fazer-me prazerosa companhia, fica um vazio que busquei e do qual andava mesmo muito precisado. E digo que esse vazio inclui (se é que é possível o vazio conter alguma coisa) a ausência de cigarras de dia, de grilos à noite e até mesmo das quase inaudíveis pegadas de um suposto abominável homem das neves – que alguns juram vagar por essas redondezas muito abaixo de zero.
Mas deixemos um pouco de lado o reino dos insetos e dos seres de existência duvidosa. O fato é que estar aqui, no seio branco da madrasta Antártida, é “marolinha”, como diz o presidente que larguei aí com você e sua turma, no país dos Simonais que submergem e vêm à tona conforme os caprichos da mídia. Difícil mesmo vai ser quando acabarem os tocos de vela e as poucas folhas de papel pardo que restam na improvisada escrivaninha da embarcação. Aí não poderei mais lhe escrever, mesmo sabendo remota a possibilidade de vir a receber esses garranchos, já que muito provavelmente o derradeiro dos 17 pombos-correio que trouxe comigo não aguentará a jornada até a Terra de Santa Cruz. E ainda que chegue não terá fôlego para trazer a resposta, o que torna esta narrativa um enfadonho monólogo por escrito.
Você, amiga íntima dos meus desafetos, sempre me teve na conta de sujeito de raciocínio um tanto quanto ornitorríntico, de acordo com suas próprias palavras. Saiba que me é impossível atinar com a razão dessa blasfêmia. Exceção se faça, contudo, ao meu vício de imitar gansos cansados, coisa da época em que nos implicávamos, e que de fato poderia sugerir um distúrbio neurológico latente a quem não me conhecesse suficientemente bem. Sempre primei por deixar transparecer uma imagem de sujeito simples e dócil no trato, tão fácil de lidar quanto um lhama da Cordilheira dos Andes. E disso todos os dálmatas do quarteirão eram fidedignas testemunhas. Mas, tudo bem, seja ou não feita justiça à minha pessoa, não estou aqui por sua causa e nem lhe peço satisfações de qualquer ordem. Fique aí ao calor dos trópicos, abusando dos decotes e arrastando no seu cio todas as espécies da sua raça. De minha parte, enquanto houver alguma condição de sobrevivência, vou ficando por aqui, entre os pinguins.
* Redator publicitário há mais de 20 anos, cronista de várias revistas eletrônicas, entre as quais a “Paradoxo”
Nada como ter o próprio cantinho onde fazer o que bem se entende, num tempo liberal, sem prazos e sem os ruídos de urgência que o cotidiano impõe. Ah, tudo branco em volta! Tudo em ponto de neve ... como um suspiro, um doce suspiro em meio ao salutar recolhimento. Pois, aproveite, mestre Marcelo, essa atmosfera inspiradora e escreva mais, sempre mais, que os leitores aguardam. Grande abraço e parabéns.
ResponderExcluirUm exílio delicioso para quem lê e com o talento de sempre, mestre Marcelo. Beijos extensivos aos pinguins.
ResponderExcluirNão fosse o frio, a solidão e o isolamento pareceram-me excelentes companhias, especialmente com um amotoado de livros.Quando for mesmo, me leve.Ou se não me levar, não se esqueça dos papeis para nos escrever.
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